novembro 05, 2006

coragem

Olhava para o armário aberto. Era uma quantidade razoável de roupas. Seus olhos viam muito além dos cabides.

Contabilizou o que restava na conta bancária. Entre Google e os sites das companhias aéreas, estudou possibilidades.

Uma mochila para o computador, uma bolsa maior para as roupas, um estojo para o oboé. De partida para Buenos Aires.

Teria que explicar para milhões de pessoas sua decisão, mas deixaria para depois. O fato precisava ser consumado.

Olhou o pequeno apartamento uma última vez. Respirou fundo, fechou a porta e virou a chave.

setembro 17, 2006

a 120 por minuto

Sim, aquilo era loucura.

Ao mesmo tempo que admirava as facilidades do mundo atual, ao lembrar do quão fácil foi encontrar seu endereço e saber sua rotina, sentia seu corpo formigar um pouco, como se a adrenalina, de certa forma, desse-lhe impulsos contraditórios a cada instante. Alguma coisa o empurrava para frente, outra lhe puxava para trás.

O clima quente do cerrado conspirava a seu favor. A janela da sacada estava entreaberta. No meio da madrugada, com a quadra completamente vazia e os poucos postes de iluminação, soltou o freio de mão do carro e empurrou-o pra bem perto. Olhou para um lado... olhou para outro... hesitou. De repente, subiu no capô e pulou para agarrar o parapeito.

Quando fez isso, pensou que era a criatura mais burra da face da Terra. Não iria conseguir sair dali. A queda era fatal. Entre todos os "ai meu Deus" que passaram pela sua cabeça, seu corpo foi se contorcendo para ultrapassar a sacada e, como num passe de mágica, viu-se com metade do corpo para dentro da casa de Lúcia.

Recuperou-se da aventura um pouco e, agachado no escuro, olhou para o balançar suave da cortina e abriu um sorriso ainda tímido, mas com os olhos muito bem abertos e brilhantes.

Tirou os sapatos e entrou. Foi reconhecendo lentamente o terreno e avistou o quarto dela. Passou a porta e a viu de camisola branca, deitada de bruços, agarrada ao travesseiro. Uma das pernas dobradas. A calcinha era azul. Nele, o coração quase saía pela boca. Sentia o peito estremecer a cada batida.

Ficou incontáveis minutos ali, admirando seu objeto de desejo.

setembro 02, 2006

perdendo a noção

Chegou atrasada. Todos já estavam lá. Na hora, pensou que não deveria ter chegado tão tarde, porque agora precisava cumprimentar todo mundo. Se tivesse sido uma das primeiras, os outros é que precisariam vir até ela. Enfim, não poderia ser diferente, já que ficou horas decidindo se iria ou não.

Muitos sorrisos e ocupou a cadeira ao lado da criatura com quem não tinha tanta empatia. Mais uma agrura dos que chegam por último. Como não conseguia sentir-se bem deixando espaço para o silêncio, virava uma máquina de puxar assuntos com perguntas cujas respostas não lhe interessavam. O que queria mesmo era que as vibrações acústicas naquela mesa continuassem suprindo os ouvidos de todos e principalmente os dela.

Acompanhou os outros na cerveja. Com o estômago vazio e o humor blasé que lhe acompanhava naquela noite, não demorou muito para que começasse a sentir os lábios formigarem. Quando se deu conta disso, as pausas da sinfonia desencontrada daquela conversa demoraram mais a lhe preocupar e ficou mais quieta. As pupilas dilataram um pouco. Sem perceber, ficava com os movimentos mais lentos. Mas havia muito tempo que não sentia isso e resolveu curtir um pouco a mínima embriaguez.

Pediu mais um copo e voltou a falar. Ria mais. Bebia devagar, mas a mão que segurava insistentemente a taça fazia movimentos mais largos e mais estranhos. Demorava mais a perceber quando a alça da blusa caía. Olhava para o colega ao lado, franzia a testa e deixava de prestar atenção ao que ele dizia. Ficava tentando entender por quê não gostava dele. Não conseguia lembrar. Naquele momento, ele até lhe parecia mais bonito. E, nos silêncios que correspondiam a sua vez de falar, ria, dizia "pois é...", "sim!", "nossa!", pois sabia que, na maioria das vezes, as pessoas só querem ser ouvidas. Um diálogo de verdade sempre foi muito difícil de ser estabelecido, principalmente porque, a cada dia, aprendia que uma das coisas mais difíceis de se encontrar eram pessoas que compartilhassem dos seus conceitos.

Como era fraca para a bebida, pensava. E ria ao pensar que as pessoas não aproveitavam seu momento de embriaguez, pois seus rompantes de sinceridade se tornavam muito mais intensos. Mas quem iria querer, ali naquela mesa, que fosse sincera? E ria mais.

A saideira. Agora acompanhava os três últimos sobreviventes da noite. O clímax do poder do álcool já havia se dissipado. Os próprios efeitos da bebida lhe diminuíam o ritmo para enxugar o copo. Entre poucos, perdia algumas discrições. Nada de muito importante, mas coisas que não explicitaria sobre sua vida se estivesse sóbria.

Tarde. Foram embora. Aceitou a carona de um amigo. Na frente de casa, agradeceu, olhou-o com ternura e deu-lhe um beijo lento nos lábios. Paralizou o rapaz. Gargalhou, pediu desculpas e saiu do carro.

Pobre homem. Não sabia que aquilo não significava nada para ela.

agosto 31, 2006

amigos amigos...

- oi
- oi!
- e aí?
- beleza
- tá pronto?
- pra q?
- pro negócio daqui a pouco
- ... ah! não
- estou passando aí em 15 minutos
- não não
- cara... vai logo... já tá tarde
- não... não vou
- q?!?!
- não vou
- pô... vc é um m...
- não cara... sabe... tava pensando... não posso
- pq?
- pq tenho q ler uns textos aqui
- ah... conta outra
- sério
- nada... te conheço. amarelou
- não, meu... é que estou sozinho... e a Lola vai me ligar
- não acredito q vc vai ficar pra conversar com a guria... já não faz isso todos os dias, não?
- ... pois é.... mas hoje... bom... é q não quero ir
- sei pq tu não quer ir
- como é?
- não quer ir pq tá com medo de dar um pé na bunda da coitada
- q?!?!
- confessa... tu tá subindo pelas paredes
- eia! tá me ofendendo
- ah... vá... tu não tem jeito mesmo... é um doido
- bom... se fosse contigo, nem taria aí pra trair a noiva, certo?
- não me bota no meio do rolo... eu tenho uma parada diferente da tua
- é... realmente diferente... qualquer dia vai ter uma surpresa quando chegar em casa mais cedo
- problema maior é ficar adiando a vida
- vc não entende
- não entendo mesmo. te vejo amanhã, então
- falou.

agosto 26, 2006

excesso

Tive dó dela. Um aperto tão grande no peito que me fazia chorar.

Na verdade, algumas vezes, é difícil entender as coisas que se passam dentro de qualquer um. Hoje, acho que consigo desvendar-lhe uma parte. Acho que gosta das solidões momentâneas que obtém quando está na companhia dos que lhe são próximos. De fato, não gosta de estar só. Tem o suportado cada vez menos. E o pior é que, à medida que lhe passam os anos, sua capacidade de amar cresce incalculavelmente, o que diminui de forma drástica sua tolerância ao isolamento.

Foi feita pra voar, é evidente. Mas não como águia. Como andorinha, em bando. E seu terrível defeito de ter exacerbada a qualidade de ceder nunca resolveu seus problemas.

O homem a quem ama perdidamente está longe. Mais uma história do freqüente problema da distância, que, no caso dela, é muito mais que cruel. Na conta, vão ficando os beijos, abraços, amassos e suspiros que já sobrariam se os encontros fossem diários. O calor do seu corpo acaba sempre se perdendo entre os lençóis.

Outro dia, confessou-me ficar sonhando com o final feliz de Mr. Darcy e Lizzie Bennet. Poor thing. O mundo de hoje é muito diferente. Tanto pra melhor, quanto pra pior.

Queria poder ajudá-la, mas nada posso fazer. Por mais que meu coração se desespere. Por mais que meus olhos deságuem. Por mais que minha alma se contorça.

Maldita incerteza dominada pelo tempo. A espera e a ignorância fazem uma combinação quase insuportável.

julho 10, 2006

wishing

Que o tempo parasse e eu não. Horas de inspiração intermináveis. Que as palavras fluíssem brilhantes na mente. Capacidade de concatenar idéias coerentemente numa velocidade parecida com a dos meus dedos no teclado.

Que mais pessoas valorizassem questões coletivas. Um mundo de boas surpresas. Que algumas pessoas não existissem. Aquelas outras multiplicadas sem correr o risco de homogeneizar uma multidão.

Que o tempo voasse até ele chegar. O corpo dele em cima do meu. Que esses dias fossem só pra nós. As nossas horas com 600 minutos. Que ele ficasse pra sempre. Eu podendo viver dessa companhia sem me preocupar com mais nada.

... quem dera... a capacidade de distiguir todos os meus desejos...

junho 10, 2006

um passo atrás

Havia gritos. Pessoas puxando e empurrando. O excesso de diferenças entre elas as tornava muito parecidas. Não sei se eu a reconheceria no meio daquele caos.

Engraçado... desde quando acontece isso? Em que momento, pessoas tão próximas fisicamente passaram a ser afetivamente tão distantes? Tão estranhas umas para as outras? Se eu perguntasse a qualquer um daqueles milhares, ninguém saberia me indicar sua direção, mesmo porque, certamente, nenhum deles a conheceria.

Mas ela estava lá. Eu sabia. Não... não havia me dito nada. Fazia muitos anos que havíamos nos distanciado. Eu mesmo tinha dúvidas de que a reconheceria num contato visual muito rápido. É que, semana passada, esbarrei nela no meio da internet. Tropecei. Tão distraidamente quanto aquele menino que parece olhar aquelas formigas. Vês?! Distração típica de uma tristeza latente. Era como eu me sentia. Tudo tão monotonamente igual e cinzento.

Relembrei da sua alegria vendo aqueles pequenos pedaços de intimidade expostos publicamente, mas compartilhados com poucos comentaristas cativos. De repente, flagrei-me quase que investigando os discursos daquelas pessoas, querendo entender mais profundamente até que ponto cada uma delas a conhecia.

Loucura... alguém que por tanto tempo dividiu a cama comigo... eu não mais conhecia. Ou melhor, conhecia, mas, ao vê-la naquela forma, tudo o que passou mais me parecia uma realidade paralela. Lembrei-me da pele, de cada pinta no corpo, do cheiro. Lia suas idiossincrasias e seu brilho voltou-me à mente. Esforcei-me, mas não consegui mais entender a razão de nosso afastamento. Creio que o colorido do passado contaminou-me irremediavelmente o peito. Ah! Como essa pimenta invadiu-me toda a boca. Posso tomar da tua água?

É... senti-me impelido por meu próprio espírito a ir aonde ela fosse. Quando me dei conta da possibilidade de a encontrar... Sabia que era remota. A multidão naquela praia, no último dia do ano, era ainda maior do que eu esperava. Mas, entre as opções que eu tinha, a de buscá-la no meio da multidão era certamente a melhor.

Agora me sinto como um voyer. Espero ocultamente outra oportunidade de esbarrar com seus olhos. Tomá-la em meus braços e refazer todos os nossos erros.

maio 11, 2006

êxtase

A festa quase por acabar, a pista quase vazia, ela com a felicidade que não cabia no peito. Começou a tocar sua banda preferida.

Primeiro, começou a mover os ombros no ritmo, levemente, quase involuntariamente. Uma amiga a puxou pelo braço e começou a dançar. Ela abriu um enorme sorriso. Progressivamente, sua cintura começou a parecer uma espécie de eixo para seu corpo. Os ombros se tornaram muito mais ousados. Os braços ganharam o alto e, depois, muito mais movimento. As ancas, de um lado pra outro, num movimento que seria meticulosamente calculado, se não fosse completamente intuitivo. Hamorniosa e audaciosamente aquele corpo se movia como nenhum outro. Até nos movimentos pequenos havia sensualidade. O sorriso não lhe saía do rosto e os olhos, quase o tempo todo, fechados. Quando efemeramente os abria, mostrava um brilho incomum. De repente, quase como uma paradinha de bateria, movia a cintura duas vezes mais devagar, mas ainda perfeitamente no ritmo, como se quisesse torturar qualquer mente masculina. Mas não era só. Quando as pernas dobravam um pouco mais, a barra do vestido repousava sobre a parte de cima das coxas.

Que importa. Seu corpo era um instrumento da agitação intensa de sua mente naquele momento. Não ligava pra mais nada. Nem pros homens que paralizavam enquanto ela se movia intensamente.

abril 23, 2006

pode ser que esteja esquecendo algo...

5 peças de roupa retiradas. 1 elástico.
Umas 50 gotas caem por primeiro.
8 ml de shampoo. Mais 7ml.
37 fios de 60 cm, em média, grudados na parede.
50 metros de percurso do sabonete.
500 cm da gilete.
15 litros de água.
107 gotas absorvidas pela toalha. 15 e meia em evaporação.
3 peças vestidas. Um par de chinelos.
2 suvacos melecados.
57 repetições do movimento da escova.
42 fios perdidos.
Mais 10 ml absorvidos. 2 pingos no chão.
Mais 30 repetições.
10 unhas cortadas. 2 gramas de queratina perdidos na lixa.
23 pêlos expatriados.
2 beiços besuntados de manteiga de cacau.
2 gotas de sândalo espalhados por 3 pontos do pescoço.
8 min de observação no espelho. 2 cravos localizados e expulsos.
2 metros de pernas hidratadas mais 1 e meio de braços e ombros.
1/2 hora de filme.
Trilhões de células bem acomodadas alcançam sono profundo.

abril 13, 2006

sábado

Acordaram. Um com os cabelos da outra na cara. A outra com um cheiro delicioso de café.
Tomaram banho juntos.
Saíram no dia lindo de sol.
Andaram. Andaram muito. Pra nenhuma direção em especial, com uma máquina fotográfica na mão.
Viram um pequeno lagarto perto da universidade. Muitos pássaros conversando em algumas árvores.
Perceberam o vento levar o papel que uma senhora carregava. Correram atrás. Perigosa perseguição.
Pararam para descansar num ponto de ônibus.
Surpreenderam-se quando um motorista parou para que eles subissem.
Subiram para ver onde iriam parar.
Quando chegaram no ponto final, foram em busca de água. Encontraram sorvete.
Perguntaram coisas pra pessoas, conheceram o lugar.
Resolveram voltar.
Fizeram uma parada no centro e foram ao cinema.
Comeram pipoca.
Compraram postais e mandaram vários. Perceberam que eram muitos os amigos.
Olharam a hora e foram até o lago, para acompanhar a despedida do sol.
Dançaram ao som de rodas de choro no caminho de volta.
Sentaram no lado de fora do apartamento, por uma hora, para um banho de luar. Contaram de diversas formas as estrelas. Já tinham milhares de imagens guardadas.
Subiram. Já estavam com saudade um do outro.

março 30, 2006

prorrogação

De repente, a chuva começou a cair. Milhões de minúsculas gotas se fizeram sentir nas faces daqueles dois apaixonados. Ele olhou rapidamente para o céu e, puxando-a pela mão, quis trazê-la para dentro de casa. Mas ela ficou imóvel. Sorriu e fechou os olhos. Pediu para que ele ficasse. E a água que caía do céu engrossou. Agora se viam riscos contínuos molhando tudo. Em pouco tempo... os cabelos lambidos, a blusa branca encharcada. Ele olhava tudo com um leve ar de espanto, mas percebeu que a cada segundo que a chuva lhe tocava os olhos, a boca, o peito, os cabelos, sentia-a mais sublime, indescritível. Lembrou dos tempos de criança, mas teve a certeza de que seu prazer de agora não teria comparação alguma com as brincadeiras infantis. Também sorriu. Olhou para aquela mulher com os braços abertos, dançando debaixo da água doce derrubada pelas nuvens, e pensou que existiam muitas coisas ainda que ela precisava lhe ensinar. Adorou pensar em envelhecer com ela. Voltou a abraçá-la. Ela lhe disse:

- Me ame debaixo da chuva. Fomos abençoados.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 5:17:20

março 20, 2006

23:27:49

Puxou-a para perto de si. Uma mão, no meio de suas costas, conduziu-a para dentro de seus braços. A outra tocava sua nuca e se enrolava em seus cabelos. Deixou seus lábios tão perto dos dela, fazendo-a ouvir sua respiração calma e alternando seu olhar profundo entre sua boca e seus olhos, que não houve remédio. Ela arrancou-lhe um beijo. Fez isso com certa pressa, com fome. Mas, depois de tanto tempo cultivando aquele desejo, ele queria esticar os segundos, parar o tempo, e apertou-a um pouco mais contra o peito. Isso a amoleceu. E, agora, os lábios se contraíam e relaxavam num balé suave e tenro. Aninhada, ela deslizou seu braço pela cintura dele e chegou às suas costas. Tocou seu pescoço e, com a ponta dos dedos, sentiu a barba mal feita. Não a havia sentido perto dos lábios, só a percebeu nesse momento, abaixo do queixo. Ele enrolou sua mão ainda mais naqueles cabelos e trilhou o caminho até sua orelha com beijos demorados. Suspirou em seu ouvido e simplesmente todos os pêlos do braço dela acordaram. Sentiu-a encolher os ombros e sorriu. Então, mordeu levemente a parte debaixo de sua orelha e suspirou novamente, mas, dessa vez, encheu e esvaziou completamente os pulmões. Viu-a encolher ainda mais o peito e, embriagado por toda aquela ternura, não percebeu que, agora, ela tinha as coxas ouriçadas também. Olhou-a se recompor relaxando o abraço. Não conseguia tirar os olhos daquele sorriso. E quando ela abriu os olhos, ele buscou sua boca mais uma vez, mas com os lábios cerrados. Ela sentiu suas costas perderem o apoio. As mãos dele tocaram seu rosto. Queria dizer-lhe novamente que a amava.

23:59:24

março 07, 2006

surreal

Sentiu-se triste. Só. E quando se sentia assim, nessa tristeza particular, ia até o piano. Olhava demoradamente para as teclas e folheava as partituras. Nesses momentos, amava os adagios, os bemóis, os tons menores mais característicos, as notas longas, o pedal. Ah... quem dera pudesse ler as peças mais apaixonadamente românticas de Brahms. Quando, enfim, começava a tocar, não interpretava a peça com o rigor técnico que lhe ensinaram os professores. As lágrimas brotavam de seus olhos. Seus dedos eram extensões perfeitas para seu coração magoado. Tocava como se aquele fosse seu grito, como se compusesse um doloroso lamento. Qualquer um que a visse choraria junto. Quem sabe,... qualquer um que a ouvisse. Não sabia que triste tocava lindamente. Triste... o instrumento se tornava seu mais íntimo amante e companheiro. Dessa relação... um afinado desabafo.

março 02, 2006

recado

Tinham passado 15 minutos de um vendaval sem precedentes. Na televisão, não precisaria esperar muito para que pipocassem as notícias de tragédias. Se antes a casa uivava através das fresta das janelas, agora parecia ter mergulhado num profundo silêncio. Logo o vento voltaria calmo, como sempre.

Resolveu sair de casa naquela tarde nebulosa. Aproveitar o pouco tempo antes da chuva. Sentir o cheiro da umidade.

Pôs o pé na areia. Estava gelada. Inflou o peito. Sentia-se só. A solidão se agravava por pensar que estava estagnado. Sua vida parecia sempre a mesma. Foi se aproximando do mar e sentiu algo alcançar seus pés. O vento suave fez enrolar em seu tornozelo um tecido frio. Olhou-o.

Ficou maravilhado quando abriu o tecido. Tão fino e tão leve, misturava cores muito vivas de rosa e azul. Notou fios dourados trançados na trama. Em uma das franjas, uma corrente amarrada. Carregava um pingente de lua e estrela. Parecia ouro.

Sentou-se na areia. Ainda podia sentir um levíssimo perfume no tecido. Deixou sua imaginação divagar.

De repente, levantou-se. Enrolou a canga sobre os ombros, deixando-a bem à mostra. Segurou a corrente entre os dedos e caminhou na direção contrária ao vento.

Caminhos misteriosos, pensou.

fevereiro 21, 2006

que remédio?

Quis diagnosticar-te para mim
Tua bula não tinha contra-indicações
Viciei-me na superdosagem.

fevereiro 18, 2006

invasão de espaço

Existe uma verdade meio negligenciada por aí: as pessoas costumam ocupar um espaço maior do que o representado pelos limites do seu corpo.

Imagine o ambiente de um bar não muito cheio. Agora, tente vislumbrar aquele espaço perto do balcão onde se pedem bebidas. Sempre existem, por ali, pessoas conversando. E... se, por acaso, você vir um casal de amigos se encontrar, espere meia hora e você poderá analisar três situações distintas. Existiria até uma quarta, mas eu confesso que nunca vi acontecer.

Primeira:
O casal permanece praticamente no mesmo lugar, a mesma distância um do outro, conversando. Nesse caso, pode ter certeza: eles são realmente só amigos, gostam da companhia um do outro e, pelo menos "via de regra", não têm nenhuma segunda intenção.

Segunda:
O casal aparenta mais próximo do que estava antes, tocam-se "acidentalmente" uma vez ou outra e entreolham-se diretamente a maior parte do tempo, como se não existisse ninguém ao lado. Bom... aí eu nem preciso dizer. As segundas intenções estão muito claras. Os momentos seguintes só vão depender da personalidade do casal.

Terceira e a mais desagradável:
O casal não está mais ali. Inicialmente, você pensa que foram embora. Depois, chegando um pouco mais perto e desviando das outras pessoas, você percebe que eles estão ali ainda, mas andaram uns bons 5 passos para a direita. A moça pode estar com os braços cruzados, meio virada, olhando para todos os lados menos pro cara. O caso é típico: como está a fim dela, ele fica invadindo o seu espaço, tentando se aproximar. Ela, a cada vez que tenta restituir os centímetros quadrados que lhe são de direito, tem que caminhar um tantinho pra trás. Como o conhece, a moça fica sem jeito de dar um belo fora no rapaz e não sabe o que fazer para sair dali.

Olha... se você vir uma situação como a terceira, tenha dó da menina. Chame o rapaz pra conversar!

A quarta situação seria o contrário. O casal ter caminhado para a esquerda. Mas... sei lá... acho que as meninas têm outras táticas... e os meninos não têm tanta resistência...

fevereiro 09, 2006

confuso

Perdeu-se. No meio de tanta paixões, ele não sabia mais o que era desejo, o que era amor, o que era ilusão. Entre tantos quereres, impossível seria pedir para que ele dissesse onde queria chegar. Foi dizendo sim, sem ao menos pensar por quantas esperanças teria que se responsabilizar. Não mediu promessas e não se preocupou com o como iria alcançar todas a barras que deveria segurar. Sem perceber, foi dizendo não para si mesmo. Enrolou-se nas próprias palavras. Estava preso em tamanha liberdade.

Ruiu-se. Como um castelo de cartas. Queria reconstruir-se de outra forma, mas não sabia por onde começar.

fevereiro 01, 2006

caríssimo,

Elas voaram na minha frente. Assim. Sem ao menos respeitar o tempo de exposição do virtual negativo. Ficou tudo tremido mesmo. Voaram como ele voou. Como o tempo dele comigo. Como o meu tempo comigo mesma. É impressionante como os momentos que se tornam eternos na minha memória sempre me parecem tão efêmeros quando estão no meu presente. Tornam-se passado muito mais rápido do que eu gostaria. Mas eu sinceramente gosto de olhar as marcas de deixei pra trás nesse caminho. Contemplá-las. Depois voltar a olhar à frente, por mais que não saiba o que vai acontecer, confiando que cada passo dado com um equilíbrio entre cautela e ousadia passe a se tornar mais uma marca iluminada na estrada que vou deixando. Lembranças.

Mas é bem provável que as trinta-réis de bico amarelo não tenham percebido a marca que deixaram na minha máquina. Muito menos desconfiam da sua passagem por esse caminho. Sorte a delas. Imagino como seria complicado conhecer todas as marcas que deixamos ao atravessar inúmeros caminhos invisíveis.

Elas eram lindas, caríssimo. A manhã também. Espero que consigas imaginar pelo borrão.

Beijo.


janeiro 19, 2006

na tua presença...

Enquanto todos bebiam e falavam alto no apartamento, ela pegou o aparelho, os fones e os chinelos e desceu.

A noite tinha acabado de cair. A lua estava baixa, amarela, enorme. Ao sentar à beira do mar, fez Villa-Lobos começar. Todos os acordes pareciam combinar com o cheiro da areia. Passou a respirar fundo e seu coração parecia bater mais lentamente. Era capaz de sentir o peito estremecer no ritmo compassado - acellerando e diminuendo - do Trenzinho Caipira.

Olhou pra lua durante muito tempo. Via aquele reflexo fascinante na água. Imaginou-se boiando naquela mancha branca, recebendo no rosto as palavras alvas do astro. Será que a veria de forma diferente se estivesse ali? Como seria ser duplamente invadida, pela melodia que lhe fazia sentir no meio da floresta e pelo clarão da lua, flutuando sobre as leves ondas daquele comecinho de oceano?

Estirou-se pela areia abrindo os braços. Fechou os olhos. Pôs-se a falar.

Então... agora, sim, dá pra conversar. Agora somos só eu e Você.

janeiro 15, 2006

a desvendar nesse ano novo...

Poderia ter sido uma história comum. A moça iria para o cinema e ficaria curiosa sobre a trilha sonora. Ao permanecer sentada durante os créditos, veria aquele rapaz, com os cabelos encaracolados, e dividiria sua atenção entre as obras e seus compositores e os cachos e aquele elástico. Mas sairia do cinema sem cumprimentá-lo. Quem sabe, o encontraria novamente, dali a alguns meses, num restaurante japonês ou numa casa de boliche. Numa peça de teatro ou num concerto. Passeando pelo Eixo Monumental, ele, distraído, olhando para cima, esbarraria nela e ela pediria desculpas. Ela notaria a gargalhada dele. Ele ficaria curioso sobre aquele jeitinho de levantar na ponta dos pés.

Mas isso é subjuntivo.

No indicativo, numa multidão de possibilidades, as letras dele esbarraram com as dela. Entre um uivo e outro, as imagens que se formavam entre aqueles três espelhos em triângulo lhe chamaram a atenção. Aconteceu tudo ao contrário. Do fim para o começo, conheceram letras, voz, imagem, pele e cheiro. De trás pra frente na exposição, já tinham bebido metade da água quando conseguiram ver o copo.

Complexo, não?! Não mais do que desafiar a distância, que convive com uma estranha proximidade desses dois corações enlaçados.