outubro 25, 2009

enigma

Ele desaguava. Vi de relance seus olhos inchados e seu rosto vermelho. Com as mãos na testa, os cotovelos sobre os joelhos, sentado no meio-fio daquela ruazinha de paralelepípedos, parecia que seu desespero podia ser compartilhado com os poucos que passavam.

Confesso que fiquei um pouco atordoada. Apesar de todas as discussões sobre as complicadas relações de gênero, estava chocada com aquela cena cujo protagonista era um homem. Levei alguns segundos ainda para voltar a dar conta de mim.

A curiosidade e uma empatia inexplicável com aquele rapaz, agora, quase desconhecido me fez entrar num café da esquina, pedir uma água e sentar na esperança de que sua tempestade passasse.

As lágrimas, que se concentravam no queixo, formavam pequenas manchas escuras em sua calça.

Depois de algum tempo, entrelaçou os dedos sobre a nuca, soluçou mais algumas vezes e respirou fundo. Levantou a cabeça e passou a olhar para um ponto indefinível, do outro lado da rua.

Paguei minha água e levei a garrafa comigo. Aproximei-me dele e, como se quisesse sentar sobre os calcanhares, abaxei-me. Quando virou o rosto, percebendo minha presença, ofereci-lhe a água. Ele contraiu os lábios e piscou longamente. Pegou minha garrafa, levantou-se e esperou que eu fizesse o mesmo. Enfiou a mão no bolso e me estendeu um papel amarrotado.

- Livra-se dele pra mim?

Profundamente tocada pela situação, apoderei-me do que ele desprezava sem encontrar palavra melhor que o silêncio. Ele me virou as costas e partiu.

Percebi que o que tinha nas mãos era, na verdade, um envelope.

"Para a misteriosa Ana."

setembro 25, 2009

si bemol

Teve o privilégio de conhecer o piano muito cedo. Ninguém precisou convencê-lo a frequentar aulas de música. O prazer com que tomava as lições, repetia os exercícios, ouvia as histórias de grandes compositores enchia a professora daquela esperança tola que instrumentistas frustrados mantêm sobre seus filhos ou pupilos.

E, certamente, não era ilusão. O pequeno tinha facilidade e vontade de aprender os mistérios daquelas sequências de frequências. Como toda criança, perdia-se no tempo. Durante os fins de semana junto aos primos, as partituras e os pedaços de marfim descobertos juntavam pó. Mas, nas poucas horas antes da aula, lembrava-se de estudar e tentava reaver a semana mal aproveitada. Mesmo assim, conseguia surpreender a tutora.

O fato é que sempre estabeleceu uma comunicação muito franca entre as melodias que aprendia e que tinha no meio do peito. Era o que fazia com que nem umas nem outro permanecessem os mesmos. Deixava-se tocar pela música e fazia-se interpretar através dela.

Mas as inconstâncias da adolescência fizeram-no abandonar os estudos.

Poucos anos depois - largado o piano -, foi presenteado com um imenso incentivo: um violino. Desdobrou-se para conseguir dar conta das expectativas e surpreendeu-se quando se descobriu apaixonado. E a história se repetiu.

Diante do fim do período colegial, o futuro que estava desenhado para ele era a faculdade. Ousou pensar em música e, por mil e uma razões, só ousou pensar. Adquiriu, então, uma vida dupla. A faculdade acumulou-lhe tarefas.

De forma contraditória, a mudança de cidade lhe trouxe crescimento musical. Começou a ter aula com um dos melhores professores, passou na seleção para um grande conservatório, investiu nas aulas de teoria, ingressou na orquestra universitária, enamorou-se de uma flautista.

O fim da faculdade expôs novamente o problema. Mas insistiu em morar fora até que terminasse o curso básico de música. Quase um ano depois, não pôde e nem quis recusar uma boa oferta de trabalho. Voltou para casa e sonhou poder continuar a trilhar dois caminhos. Não conseguiu.

A partir daí, as poucas vezes que foi a concertos viu a orquestra com o olhar turvo. O precioso instrumento, dolorosamente inesquecido, sofria calado as ações do tempo esperando ansioso o momento de voltar a vibrar.

agosto 13, 2009

o mesmo

Sabes aquele momento em que os olhos se águam levemente de desejo?
Acontece ainda comigo.

A água na boca de excitação?
Está aqui, agora.

Sabes aquele calor que aparece repentinamente no corpo, queimando um pouco do bom senso e fazendo me entregar sem pensar?
Ainda sinto, repetidas vezes.

Continuo suspirando ao toque da tua mão no meu rosto e arrepiando quando ela desce lentamente.

Reações nada extraordinárias. Não há situação mais comum no mundo dos homens e das mulheres. O que me marca é a recorrência... com você.

julho 19, 2009

triiiiim

Comecei a abrir os olhos e os fechei novamente. Perceber que estou na cama nunca foi impedimento para que continuasse assistindo aos meus sonhos. Acabam sendo momentos um pouco surreais os que me permitem ser telespectadora de mim mesma em situações um tanto quanto inusitadas. Mas, uma hora, o sonho acaba, como um filme gravado pela metade, e meus olhos se abrem definitivamente.

Assustei-me com o horário. Hibernei. Séculos se passaram e eu não me dei conta. Vejo esse meu quarto,... minhas palavras trazem as cenas, de momentos antes, com Morfeu em minha memória. Esfregar as mãos sobre o rosto sempre parece ajeitar a casa.

Vou abrir a janela, tomar um pouco d'água e volto. Eu espero.