maio 29, 2008

um

Foi pega de surpresa naquela noite. É provável que nunca mais tivesse um momento tão marcante na frente de uma bilheteria de cinema. Ainda conseguia lembrar de como sentiu o beijo farto e quente em sua bochecha. Podia ver por trás das pálpebras os olhos verdes cheios de surpresa.

Coincidências incríveis essas que nos apresentam ao nosso futuro. Ela não fazia idéia.

Não foi difícil acomodar-se junto a seus amigos deixando um lugar vago ao seu lado. E não foi preciso comunicar a ninguém de quem era aquele espaço. Estranho e sublime magnetismo. Ao lembrar daqueles minutos, reconstituía o sorriso preso pelos lábios ao perceber que o corpo dele respondia como um espelho aos movimentos de seu corpo, no início da sessão.

Pôde libertar os lábios quando, durante os trailers, ele comentou sobre o tapa-olho de Tom Cruise. Mas o sorriso largo reagia menos à piada e mais à toda aquela redoma de curiosidade, satisfação e fascínio que se instalou entre aquelas duas cadeiras.

"O amor nos tempos do cólera".

Quatro pessoas paradas no estacionamento e um momento de silêncio. Curto... quase imperceptível, mas ela compreendeu aqueles segundos como saturados de significado. Ele se despediu dela por último com aquele mesmo beijo único: "muito prazer em conhecê-la".

Nunca se sabe como plantar nós no peito. Só se sabe quando eles vingam.

março 12, 2008

sonho

O dia no colégio tinha sido chato. Aulas de matemática são bacanas quando o assunto é compreensível. As matrizes sempre o pegavam pelo pé. A amiga havia faltado.

Saiu daquela muvuca na porta da escola com um ar meio pesado. O dia estava diferente dos normais, sempre marcados pelo sorriso maroto no rosto. Despediu-se rapidamente dos amigos, não estendeu nenhuma conversa.

Desistiu de pegar o ônibus, preferiu andar. Foi subindo a ladeira da rua comprida que daria na sua casa. Ele gostava do esforço extra nas pernas.

De repente, o céu fechou. A ventania chegou rápido arrancando muitas folhas secas das árvores.

O garoto já foi se preparando para a tempestade. Da mochila que carregava com as duas mãos segurando as alças nos ombros tirou o guarda-chuva. Mais uns cinco passos e a água caiu. Muita. Tanta, que ele resolveu esperar a crise mais forte passar debaixo da marquise da padaria.

Fez um pequeno esconderijo: sentou na soleira da entrada, colocou o guarda-chuva na sua frente e se encolheu no abrigo improvisado. Depois de uns 10 minutos, o toró virou chuvisco e o menino retomou seu rumo.

Chegou no topo da ladeira e percebeu quanta água tinha caído. Corredeiras se formaram entre o meio-fio e a rua asfaltada. Começou a saltar poças, transpor córregos. Mas não demorou muito para perceber que não fugiria das águas que corriam cada vez mais depressa na descida.

Então lembrou das histórias de que mais gostava, dos heróis preferidos e virou o guarda-chuva. Pousou-o sobre uma das corredeiras e sentou na parte interna, envolvendo a estrutura metálica com as pernas. Usou o cabo como manche. Assim desceu as cinco quadras ladeira abaixo. Como numa aventura dos quadrinhos que sempre lia.

Rapidamente chegou em casa, mas com o guarda-chuva destruído e as roupas encharcadas.

Assim, a manhã que havia terminado desanimadora, transformou-se num dia delicioso e único. Depois da preocupação e do carinho maternos, um banho quente e um almoço com banana frita e farofa, deitou no sofá sentindo a brisa fresca vinda da janela. Puxou uma colcha, agarrou uma almofada e dormiu.

fevereiro 26, 2008

exílio

Eu decidi sim. Resolvi me afastar mais uma vez. E quer saber?! Arrependimento bateu à minha porta. Bateu forte, dolorido. Rasgou meu coração várias vezes, desde que cheguei aqui.

Rasgar é um verbo perfeito para o acontecido, aliás. Nunca havia sentido isso com tamanha nitidez.

Chega uma hora em que tua alma te pede para priorizar a felicidade. E eu odeio o mercado por isso. O tal mercado de trabalho. Não fosse por ele, eu provavelmente não estaria aqui. Mas não é culpa dele, é claro. A única responsabilidade é minha e vou assumi-la, mesmo doendo tanto o meu coração. Mesmo querendo tanto a minha pele a pele dele. Mesmo sem poder ver minha família a hora em que eu bem entender.

O sol está brilhando lá fora. Eu vou atender ao chamado dele daqui a pouco. Logo depois que as lágrimas secarem. Antes do meu estômago me dizer chega. Assim que eu juntar os pedacinhos que estão nessa cama.

Pode até parecer impossível, mas eu consigo.

janeiro 22, 2008

mexe com quem tá quieto...

Já conversavam por horas e horas. Divertiam-se um com o outro.

A cada momento, o impulso que ele sentia em direção a ela parecia mais difícil de segurar. Mas não tinha certeza do que ela sentia por ele, então agüentava o tranco, engolia o desejo.

Depois do jantar, sentaram-se no sofá. Ela tirou as sandálias e sentou com as pernas encolhidas para o lado. Deixou a garrafa na mesa em frente e dividiu o resto do vinho nas taças. Quando a sua secou, deixou-a também na mesa. Repousou o braço na parte alta do encosto e deu apoio à cabeça com a mão.

Por um instante, ele perdeu o rumo da conversa. Ela piscou lentamente e manteve um sorriso sutil. Silêncio.

Nervoso, ele recomeçou a falar, mas finalmente percebeu o olhar dela fixo para seus lábios.

De repente, engoliu o resto do vinho, largou a taça e puxou-a para perto pela cintura.

...

- Esse beijo me deixou completamente amolecida.

- Engraçado...

Sussurando no seu ouvido, ele disse:

... comigo aconteceu um pouco diferente...

janeiro 16, 2008

início

Quando se aposentou, nem considerou a possibilidade de parar de trabalhar. Era muito novo ainda. Sentia-se muito novo ainda.

Ficou mais dez anos com o escritório. Nos primeiros anos acabou até aumentando o ritmo de trabalho. Depois, aprendeu a dosar. Muito mais coisas se tornaram triviais.

Mas chegou o dia em que começou a pensar que seria bom aproveitar o restante da vida... sem os compromissos alheios à sua vontade... sem a beca usual... sem os ambientes de ar condicionado.

Organizou uma lista com os contatos de seus principais pupilos. Meu filho bem que podia estar aqui. O rapaz tinha escolhido jornalismo. E saiu revolucionário, vá entender. De agora em diante, passaria seus clientes para eles.

Quando chegou em casa, na sexta-feira, sentou na poltrona confortável do escritório e suspirou profundamente. Deve ter ficado uns dez minutos ali, ouvindo o silêncio. Levantou-se, abriu o armário ao lado do arquivo, catou dois CDs e ligou o computador. Há tempos não via aquelas fotos. Mas o que realmente lhe chamou a atenção foi uma pasta de páginas html. Ao abrir, foi atropelado sentimentalmente por um antigo blog. Vasculhou quase todos os posts.

Saciado, abriu o último que publicou em tela inteira. Encostou-se na cadeira, apoiou o cotovelo na mesa e alisou a pele escanhoada do rosto sem tirar os olhos do monitor.

De repente, foi em busca do celular.

- Lembra aquele trato? Partidas de xadrez são minhas, as de damas são tuas. Você leva as peças? Vou comprar uma boa garrafa de vinho e vou reservando uma mesa na praça. Beijo.

janeiro 04, 2008

pronta

Nada aconteceu. A oportunidade de dar um tapa na solidão se colocou à frente dela durante horas e horas seguidas. Intermitentemente. Insistentemente. Mas ela olhou nos olhos da sorte e deixou-a passar.


Não era birra ou conservadorismo. Não era medo, de forma alguma. Pela primeira vez na vida, quem sabe, ela tenha ficado feliz de não ter feito nada.


Sentiu-se forte. Sentiu-se esplêndida. Estava só, convictamente, mas não porque queria estar só. Ela não queria mais uma companhia.


A que realmente queria... não o tinha encontrado... ainda.