setembro 17, 2006

a 120 por minuto

Sim, aquilo era loucura.

Ao mesmo tempo que admirava as facilidades do mundo atual, ao lembrar do quão fácil foi encontrar seu endereço e saber sua rotina, sentia seu corpo formigar um pouco, como se a adrenalina, de certa forma, desse-lhe impulsos contraditórios a cada instante. Alguma coisa o empurrava para frente, outra lhe puxava para trás.

O clima quente do cerrado conspirava a seu favor. A janela da sacada estava entreaberta. No meio da madrugada, com a quadra completamente vazia e os poucos postes de iluminação, soltou o freio de mão do carro e empurrou-o pra bem perto. Olhou para um lado... olhou para outro... hesitou. De repente, subiu no capô e pulou para agarrar o parapeito.

Quando fez isso, pensou que era a criatura mais burra da face da Terra. Não iria conseguir sair dali. A queda era fatal. Entre todos os "ai meu Deus" que passaram pela sua cabeça, seu corpo foi se contorcendo para ultrapassar a sacada e, como num passe de mágica, viu-se com metade do corpo para dentro da casa de Lúcia.

Recuperou-se da aventura um pouco e, agachado no escuro, olhou para o balançar suave da cortina e abriu um sorriso ainda tímido, mas com os olhos muito bem abertos e brilhantes.

Tirou os sapatos e entrou. Foi reconhecendo lentamente o terreno e avistou o quarto dela. Passou a porta e a viu de camisola branca, deitada de bruços, agarrada ao travesseiro. Uma das pernas dobradas. A calcinha era azul. Nele, o coração quase saía pela boca. Sentia o peito estremecer a cada batida.

Ficou incontáveis minutos ali, admirando seu objeto de desejo.

setembro 02, 2006

perdendo a noção

Chegou atrasada. Todos já estavam lá. Na hora, pensou que não deveria ter chegado tão tarde, porque agora precisava cumprimentar todo mundo. Se tivesse sido uma das primeiras, os outros é que precisariam vir até ela. Enfim, não poderia ser diferente, já que ficou horas decidindo se iria ou não.

Muitos sorrisos e ocupou a cadeira ao lado da criatura com quem não tinha tanta empatia. Mais uma agrura dos que chegam por último. Como não conseguia sentir-se bem deixando espaço para o silêncio, virava uma máquina de puxar assuntos com perguntas cujas respostas não lhe interessavam. O que queria mesmo era que as vibrações acústicas naquela mesa continuassem suprindo os ouvidos de todos e principalmente os dela.

Acompanhou os outros na cerveja. Com o estômago vazio e o humor blasé que lhe acompanhava naquela noite, não demorou muito para que começasse a sentir os lábios formigarem. Quando se deu conta disso, as pausas da sinfonia desencontrada daquela conversa demoraram mais a lhe preocupar e ficou mais quieta. As pupilas dilataram um pouco. Sem perceber, ficava com os movimentos mais lentos. Mas havia muito tempo que não sentia isso e resolveu curtir um pouco a mínima embriaguez.

Pediu mais um copo e voltou a falar. Ria mais. Bebia devagar, mas a mão que segurava insistentemente a taça fazia movimentos mais largos e mais estranhos. Demorava mais a perceber quando a alça da blusa caía. Olhava para o colega ao lado, franzia a testa e deixava de prestar atenção ao que ele dizia. Ficava tentando entender por quê não gostava dele. Não conseguia lembrar. Naquele momento, ele até lhe parecia mais bonito. E, nos silêncios que correspondiam a sua vez de falar, ria, dizia "pois é...", "sim!", "nossa!", pois sabia que, na maioria das vezes, as pessoas só querem ser ouvidas. Um diálogo de verdade sempre foi muito difícil de ser estabelecido, principalmente porque, a cada dia, aprendia que uma das coisas mais difíceis de se encontrar eram pessoas que compartilhassem dos seus conceitos.

Como era fraca para a bebida, pensava. E ria ao pensar que as pessoas não aproveitavam seu momento de embriaguez, pois seus rompantes de sinceridade se tornavam muito mais intensos. Mas quem iria querer, ali naquela mesa, que fosse sincera? E ria mais.

A saideira. Agora acompanhava os três últimos sobreviventes da noite. O clímax do poder do álcool já havia se dissipado. Os próprios efeitos da bebida lhe diminuíam o ritmo para enxugar o copo. Entre poucos, perdia algumas discrições. Nada de muito importante, mas coisas que não explicitaria sobre sua vida se estivesse sóbria.

Tarde. Foram embora. Aceitou a carona de um amigo. Na frente de casa, agradeceu, olhou-o com ternura e deu-lhe um beijo lento nos lábios. Paralizou o rapaz. Gargalhou, pediu desculpas e saiu do carro.

Pobre homem. Não sabia que aquilo não significava nada para ela.