novembro 27, 2005

breathing

Outono chegara. Naquele país que lhe era tão sonhado, as folhas amareladas e avermelhadas cobriam as ruas que lhe pareciam tão antigas. Caminhava e, no olhar, trazia um misto de curiosidade e familiaridade. O canto esquerdo da boca levemente curvado para cima. O instrumento pendurado no ombro direito e as mãos nos bolsos daquele casaco que deixava ser corpo esguio. Gostava de sentir os cabelos voando suavemente com cada passo largo seu. Olhava as folhas se espalharem e as pessoas que passavam sem a notar. Ela as notava, todas. O sol do amanhecer era seu amante. Sentia-o entrar em seu corpo como alguém que a conhecia há muito, muito, muito.

Começava a ouvir o som de um violão e uma voz. Aproximavam-se. Apaixonou-se pela melodia. Ao chegar à esquina, viu-o sentado num café, completamente absorto nos acordes. Parou. Pôs-se a ouvi-lo e só a ouvi-lo. Em poucos segundos não prestava atenção a mais nada. Só a ele. Sua cintura acompanhava discretamente o ritmo. A cidade era dela. E os olhares da cidade também passaram a ser. O dele continuava fechado. Quando ele levantou as pálpebras, não existiu possiblidade de não a ver. Cumprimentaram-se sem gestos ou palavras. Ela se lembrou de qual era o final de seu caminho naquele dia. O sol lhe chamava de volta. Então, ela foi até o músico, deu-lhe um beijo no rosto e voltou a pisar nas folhas secas.

Yes, sir. I love this. Wish you were here.

novembro 12, 2005

identidade (5) - fim

- Por que tenho a impressão de que você não me é tão desconhecido assim?

- Me conheceste poucos minutos antes do acidente.

Franzi a testa. De repente, aquela imagem de alguém me apertando bruscamente os ombros...

- Você é aquele pai...

- Isso mesmo. O que procurava pela mulher dos cabelos cacheados.

- Nossa...

Por algum tempo ficamos nos olhando. Quando eu vi aquele tapa, pensei que era só uma voyer de uma história que nunca seria minha. Mas aquela mão pesou em mim, de alguma forma, e em poucos segundos eu deixei de ser uma simples observadora. Estava completamente envolvida naquele estranho contexto.

Felipe me contou sobre um caso tórrido de amor. Pura imaturidade e inconseqüência. A falta de dinheiro os separou. Alguém mais rico e mais ingênuo entrou na jogada. Ele ficou sem amor, sem filho. Ela conseguiu se esconder por um tempo. À primeira vista, Felipe achou que seria melhor assim. Mas, como acontece com algumas coisas que a gente deixa pra trás na vida, o tempo passou e a vontade de remexer no passado apareceu como unha encravada. Incomodava. Doía. Aos poucos, o que parecia morto pra sempre começava a recobrar os sentidos. Cada passo à frente que dava lhe soava como uma imensa vitória. Dezesseis anos se passaram até que tudo estivesse pronto.

Mas a multidão, as pistas, eu, ele, a mãe. Felipe não tinha dado conta de todas as variáveis. Reconstituía-me as cenas do "quase-encontro" com os olhos completamente marejados. Acabei me perdendo no azul intenso daquelas janelas abertas de sua alma.

- Eu cheguei a vê-lo de relance! Seus olhos... lembraram-me tanto de meu...

Sentado na beirada de minha cama, não terminou a frase. Ao fechar os olhos, duas lágrimas espessas escorreram. Respirou fundo e enxugou-as com a mão direita.

- Desculpe-me. Sei que não tens nada a...

Não me contive. Beijei sua boca. Lembrando-me disso, nem sei exatamente o quê jogou meus lábios contra os dele, mas o fato é que nossos dois corações inquietos, naquele momento, acalmaram-se. Não era só o peito dele que se encontrava tão vazio. Enlacei seu corpo no meu suavemente e inspiramos juntos. Tudo parecia mais leve. Quando lentamente afastei meu corpo, toquei em sua nuca e acariciei seu cabelo. Ele sorriu.

- Não se preocupe. Eu estou contigo agora.

* Não sei exatamente se essa história termina por aqui. O fato é que não tenho mais nenhuma informação a respeito do caso. Se alguém souber de alguma coisa, por favor, continue o relato.

novembro 03, 2005

identidade (4) - penúltimo capítulo

Quando consegui finalmente abrir os olhos, senti-me emergindo de uma situação de quase afogamento. Puxei todo o ar que podia. Minha boca demorou a fechar. Meus olhos abertos queriam ver mais do que podiam. Tudo doía. Era uma sensação de ressaca multiplicada inúmeras vezes. Minha cabeça pesava como nunca. Senti-me invadida por agulhas.

É difícil dizer ao certo quanto tempo fiquei a olhar tudo em minha volta. Creio que minha forma de perceber os minutos passarem estava completamente alterada naquele momento. Enquanto os poucos movimentos físicos que podia realizar pareciam acontecer lentamente, meus pensamentos corriam num ritmo frenético. Tentei recompor algumas cenas na cabeça. Um passado que eu não sabia quão recente era.

Uma enfermeira abriu a porta e, quando percebeu meus olhos arregalados, pareceu se surpreender. Sorriu serenamente.

- Que bom lhe ver acordada. Como você se sente?

Não demorou muito para receber mais uma visita. O médico chegou e pegou minha mão.

- Liguei para seu marido. Ele disse que, o quanto antes, vem vê-la.

Dessa vez fui eu que sorri. Não conseguí passar daquele sorriso tímido, quando os dentes continuam ocultos.

- Que bom. ... Mas... há quanto tempo estou aqui?

- Você chegou há três dias. Perdeu muito sangue. Mas tenho certeza de que seu marido vai lhe responder todas as perguntas. Tenho que continuar minha ronda.

Devo ter acordado no meio da tarde, porque não demorou muito a escurecer e, logo que o sol se escondeu, um homem entrou.

- Olá. Fico feliz em vê-la melhor. Estava preocupado.

- Bom... você deve ser meu marido, acertei?!

- Isso mesmo. Prazer, eu sou Felipe.