setembro 29, 2005

água na boca

Ela os recebeu com os olhos um pouco arregalados. O barquinho era uma obra de arte. Pequenos rolinhos de arroz, envoltos por finos pedaços de algas, coisas coloridas do interior. Cores intensas. Pegou os dois palitinhos. Lambeu os lábios sutilmente.

Eu a observava. Parecia que ela se esquecia do mundo naquele momento. Coloquei um pouco de shoyo no pratinho. Passei um pouco da raiz no sushi de pepino. Pedi-lhe que comesse um gengibre antes. Ela apertou com força os olhos. Não pude conter o sorriso.

- Ei... péra. Esse suco não combina.

Esperamos um instante. O saquê quente não demorou muito.

Bebi com ela. Mas suas pálpebras insistiam em manter seu olhar concentrado no que lhe acontecia por dentro, enquanto meus olhos só sabiam fitar o rosto dela.

Eu catei um e fiz sinal para que me acompanhasse. Abriu com vontade a boca e assim que colocou pra dentro, fechou os olhos. Não precisava imaginar o que ela sentia. Ainda lembrava da minha primeira vez. Seu jeito calmo de mastigar me dava água na boca. Sentiu o arroz primeiro. O pepino depois. Mas, de repente, a raiz forte se espalhou por toda a língua e mucosas. No mesmo instante ela abriu os olhos arregalados e subiu as sobrancelhas.

- Hum!!!!
- Hahahahaha!

Ela abriu o maior sorriso que podia com os lábios fechados. Depois virou os olhos. Eu sentia tudo novamente ao olhar suas expressões.

Fomos repetindo tudo. Um gosto de cada vez. Chegamos no sashimi. Salmão. Raiz. Shoyo. Boca. Não mordíamos o peixe. Apertá-lo com a língua contra o céu da boca era muito mais interessante. Era como se ele derretesse em meio à saliva enquanto a raiz anestesiava tudo. Eternos segundos. Os lábios recorriam novamente ao copo quadrado da bebida quente. O gosto alcoólico do arroz parecia mais intenso agora. Ela começava a sentir o lábio inferior entorpecer.

Seus pés procuraram os meus debaixo da mesa. Meu corpo se aqueceu imediatamente. Olhou-me como nunca antes. Seus olhos entraram nos meus e viam minha alma. Naquele momento, conhecíamos-nos profundamente. Vontade louca de estar e não estar ali ao mesmo tempo. Loucos olhinhos puxados. Louca raiz. Loucos palitinhos que traziam pela mão dela um novo pedaço de céu e inferno à minha boca.

setembro 22, 2005

agonia

Sabe aquela hora em que você não entende mais nada, em que não quer saber mais nada, quando tudo lhe parece incompreensível?
Aquele momento em que você parece estar no meio de um caminho que não leva a lugar nenhum e as marcas que você deixou na chegada parecem ter sumido?
Até dá pra desvendar o porquê da sua presença ali, mas seria bastante complicado dizer qual seria o próximo passo.
Há uma infinidade de correntes de ar. Todas o querendo levar pra um lugar diferente.
Cheio de possiblidades, você parece não poder ou não querer nenhuma delas. É uma peça com encaixe elíptico num quebra-cabeças de cortes retos.
Empacado ou planando? Nem mesmo você saber dizer.
Será que está com as rédeas na mão? Será que os cavalos estão encilhados? Será que eles são seus?
E os seus desejos? De quem são?
O duro é esperar para atravessar a rua. É vagar sem direção onde as ruas já estão definidas. É trilhar o seu próprio caminho no meio da multidão inquieta.
Queria viver de vento. Mas o vento é só meu amigo, nada mais.

setembro 19, 2005

sem chave

Uma lágrima desceu em seu rosto. Era mais salgada do que o normal. Do outro lado, o sal também escorreu. Parecia vir intenso direto do coração. A boca contraiu levemente antes da mão chegar tentando escondê-la. Foram só três, mas as gotas marcaram seu rosto. Quando as sobrancelhas ficaram muito próximas uma da outra, os olhos se fecharam fortemente.

Não. Tinha muito mais ali dentro. Mas o costume trancafiava todo o rio. O gosto diferente na língua. O nó esquisito no peito. A impressão de tudo ser tão pequeno e tão grande. A certeza de que ninguém entenderia.

Em poucos segundos as marcas só seriam vistas pelo espelho. Ainda não era o momento de cair, pensou.

setembro 15, 2005

olheiro

Não estava num dia bom. A insônia a acompanhou até o fim da madrugada, tinha acordado atrasada, havia perdido o ônibus, teve de beber um café frio e aguado. Quando chegou, disseram-lhe que muitos documentos a esperavam. Arquivou muitos, reclassificou outros tantos. O pó e o cheiro de mofo agravados pelos intermináveis dias de chuva na cidade entraram-lhe nas narinas. Espirrou. Espirrou. Espirrou. Já era a terceira vez naquela manhã que visitava o banheiro para se lavar.

Terminando a tarefa desprezível no arquivo, direcionou-se ao balcão. Até havia se acostumado com o barulho irritante das senhas, mas, especificamente naquele dia, as campainhas pareciam soar muito mais do que o normal. E..., para piorar seu ânimo com o mundo, um homem, desde que retirou sua senha e pôs-se a esperar em pé dentro da repartição, não tirava os olhos dela.

O incômodo era tamanho - com a alergia, o trabalho, o clima, os colegas, o café, o sono e, agora, o homem - que os espirros se tornaram ainda mais violentos. Quase escandalosos. O homem não olhava exatamente pros seus olhos e isso a intrigava ainda mais. Sentia-se analisada no pior sentido da palavra. Queria, pelo menos, que seu rosto estivesse lembrando menos Rudolph, mas não conseguia parar de esfregar a mão no nariz.

Depois de uma eterna meia hora, a vez do homem coube exatamente a ela. Não poderia ser diferente naquele dia.

- Sim...
- Um certidão negativa de ICMS, por favor.
- O Sr. precisa de...
- Está tudo aqui.

Começou a verificar os documentos. Folheava os papéis, mas só conseguia pensar naquele olhar insistente que não parava de mirar seu rosto.

- Uhum... é... percebi que o senhor me acha diferente.
- ... O quê?
- Percebi que não pára de olhar pra mim. Tem alguma coisa errada?
- Ah... não, não... desculpe-me. É... que... na verdade... bom, o fato é que minha empresa é bem perto daqui, sabe..., então, vim a pé. Quando passei naquela floricultura, ali da esquina, vi umas flores - rosas - com uma cor linda. Algo que eu nunca tinha visto igual. Fiquei impressionado, sabe?! Então... quando cheguei aqui... desculpe-me... não pude deixar de notar você... está espirrando bastante. Mas... o que me chamou a atenção mesmo foi que... não me leve a mal, não... mas é impressionante como a cor dos seus lábios se parece com a cor das rosas que me chamaram a atenção lá fora. Foi só isso... nem percebi que estava incomodada... na verdade... nem pensei que pudesse estar incomodando... desculpe-me mais uma vez.

Com a respiração um pouco presa, os olhos um tanto incrédulos e secos, a boca entreaberta, ela só lhe disse pra que esperasse um minuto. Fez o caminho como quem desliga o despertador de olhos fechados ao lado da cama, sonâmbula.

- Ah... tudo bem... aqui está. O Sr. pode voltar na terça-feira que vem para pegar a certidão.
- Ok... obrigado.

Miraculoso remédio para os espirros.

setembro 11, 2005

caça... caçador...

Então... chega. Preciso sair. A noite não está linda, mas pode ficar.

Temperatura boa... vontade louca de ver gente... não quero endoidecer.

Vamos ver... deve ser uma roupa que não chame muito a atenção, mas que seja especial para um bom observador. Bom... acho que hoje vai ser difícil, porque esse espelho parece estar me olhando um pouco torto. Hum... esse não... isso não dá certo... hum... vamos ver se encontro algo melhor... esse é muito decotado... esse é meio transparente...
Gosto da calça branca, mas é melhor não. Muito evidente se algum imprevisto acontece.

Isso! O vestido preto é bom.

Tomar banho, secar o cabelo, escovar os dentes. Bem que eu poderia fazer uns rolinhos nesse cabelo sem graça. Mas... ix... dá muito trabalho. Não estou com saco pra isso.

Lápis, rimel, batom. Não adianta: nunca gosto do vermelho. A boca parece que vem dois quilômetros antes do corpo. Vai o de sempre mesmo.

Perfume... hum... nem muito doce nem muito cítrico.

Salto. Chaves. Bolsa?! Só atrapalha. A gente dá um jeito.

...

...

...

Freio de mão. Voltei cedo. Típico. Sempre chego com a mesma conclusão. Melhor seria se tivesse calçado um tênis. Pena que os homens de tênis parecem não sair à noite.

setembro 02, 2005

medo do branco

Quantas informações ele pode guardar?
Quantos atalhos ele pode construir?
Será que existem gavetinhas suficientes?
E se, na hora "h", ele não conseguir me mostrar qual delas abrir?
E... se ele me mostrar errado?
E as coisas que pertencem a duas memórias ao mesmo tempo? Onde ficam?
Como ele distingue o que deve gravar e o que não?
Ele sabe que confio nele... mas... sabe como é... nem sempre ele está de bom humor.