dezembro 19, 2005

desligamento

Rasgava cada foto com uma calma assustadora. Era uma caixa cheia de momentos felizes transformados em lixo. Fez questão de arrancar a imagem dela de cada retrato, rasgando-a em vários pedaços até que ficasse irreconhecível. Se houvesse lágrimas em seu rosto, poderia pensar que se acometera de uma tristeza infinita, mas seu olhar era frio. Denso. Opaco.

Alguém diria que estava buscando apagar de sua memória aquela parte de sua vida, totalmente dedicada a ela. Quem sabe, ele realmente estivesse pensando nisso quando estilhaçou a primeira fotografia. No entanto, sua lembranças se tornavam cada vez mais vivas enquanto ouvia a laceração daqueles papéis. De todos os músculos de seu corpo, o que se encontrava mais rijo estava no meio do peito. Juntou os montes. Jogou-os pela janela e assistiu a queda de cada um deles, demoradamente, acompanhando o trajeto vertical de vinte andares até o asfalto movimentado em plena Av. Paulista. Por algum tempo, os pedaços ainda voavam, carregados pelo movimento dos carros, das pessoas. Poucas chegaram a olhar pra cima, tentando entender de onde vinham aquelas minúsculas imagens incompreensíveis.

Encheu os pulmões com o ar cinza e pesado e sentiu-se mais forte. Sentou, pôs os cotovelos nos braços da cadeira, acomodou suas costas no encosto estofado, juntou as pontas dos dedos das duas mãos e, com eles, apoiou a boca e parte do queixo. Esperava, olhando fixamente para a porta. Pouco tempo depois, duas batidas. Imóvel. Duas mais. Seus olhos nem piscaram. Já acostumado com a escuridão da sala, viu o trinco se mover lentamente. Sentiu-se pronto.

Enfim, era mesmo seu melhor amigo. Uma mão abria a porta, agora bruscamente, a outra envolvia a cintura de sua mulher. Beijava-a. Levantou-a em seus braços e fechou novamente a sala chutando a porta.

Ele, por um momento, fechou e apertou as pálpebras, mas abriu-as novamente, sem lágrimas, sem amor.

Quando chegaram à mesa, baixou o braço até o interruptor.