março 30, 2006

prorrogação

De repente, a chuva começou a cair. Milhões de minúsculas gotas se fizeram sentir nas faces daqueles dois apaixonados. Ele olhou rapidamente para o céu e, puxando-a pela mão, quis trazê-la para dentro de casa. Mas ela ficou imóvel. Sorriu e fechou os olhos. Pediu para que ele ficasse. E a água que caía do céu engrossou. Agora se viam riscos contínuos molhando tudo. Em pouco tempo... os cabelos lambidos, a blusa branca encharcada. Ele olhava tudo com um leve ar de espanto, mas percebeu que a cada segundo que a chuva lhe tocava os olhos, a boca, o peito, os cabelos, sentia-a mais sublime, indescritível. Lembrou dos tempos de criança, mas teve a certeza de que seu prazer de agora não teria comparação alguma com as brincadeiras infantis. Também sorriu. Olhou para aquela mulher com os braços abertos, dançando debaixo da água doce derrubada pelas nuvens, e pensou que existiam muitas coisas ainda que ela precisava lhe ensinar. Adorou pensar em envelhecer com ela. Voltou a abraçá-la. Ela lhe disse:

- Me ame debaixo da chuva. Fomos abençoados.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... 5:17:20

março 20, 2006

23:27:49

Puxou-a para perto de si. Uma mão, no meio de suas costas, conduziu-a para dentro de seus braços. A outra tocava sua nuca e se enrolava em seus cabelos. Deixou seus lábios tão perto dos dela, fazendo-a ouvir sua respiração calma e alternando seu olhar profundo entre sua boca e seus olhos, que não houve remédio. Ela arrancou-lhe um beijo. Fez isso com certa pressa, com fome. Mas, depois de tanto tempo cultivando aquele desejo, ele queria esticar os segundos, parar o tempo, e apertou-a um pouco mais contra o peito. Isso a amoleceu. E, agora, os lábios se contraíam e relaxavam num balé suave e tenro. Aninhada, ela deslizou seu braço pela cintura dele e chegou às suas costas. Tocou seu pescoço e, com a ponta dos dedos, sentiu a barba mal feita. Não a havia sentido perto dos lábios, só a percebeu nesse momento, abaixo do queixo. Ele enrolou sua mão ainda mais naqueles cabelos e trilhou o caminho até sua orelha com beijos demorados. Suspirou em seu ouvido e simplesmente todos os pêlos do braço dela acordaram. Sentiu-a encolher os ombros e sorriu. Então, mordeu levemente a parte debaixo de sua orelha e suspirou novamente, mas, dessa vez, encheu e esvaziou completamente os pulmões. Viu-a encolher ainda mais o peito e, embriagado por toda aquela ternura, não percebeu que, agora, ela tinha as coxas ouriçadas também. Olhou-a se recompor relaxando o abraço. Não conseguia tirar os olhos daquele sorriso. E quando ela abriu os olhos, ele buscou sua boca mais uma vez, mas com os lábios cerrados. Ela sentiu suas costas perderem o apoio. As mãos dele tocaram seu rosto. Queria dizer-lhe novamente que a amava.

23:59:24

março 07, 2006

surreal

Sentiu-se triste. Só. E quando se sentia assim, nessa tristeza particular, ia até o piano. Olhava demoradamente para as teclas e folheava as partituras. Nesses momentos, amava os adagios, os bemóis, os tons menores mais característicos, as notas longas, o pedal. Ah... quem dera pudesse ler as peças mais apaixonadamente românticas de Brahms. Quando, enfim, começava a tocar, não interpretava a peça com o rigor técnico que lhe ensinaram os professores. As lágrimas brotavam de seus olhos. Seus dedos eram extensões perfeitas para seu coração magoado. Tocava como se aquele fosse seu grito, como se compusesse um doloroso lamento. Qualquer um que a visse choraria junto. Quem sabe,... qualquer um que a ouvisse. Não sabia que triste tocava lindamente. Triste... o instrumento se tornava seu mais íntimo amante e companheiro. Dessa relação... um afinado desabafo.

março 02, 2006

recado

Tinham passado 15 minutos de um vendaval sem precedentes. Na televisão, não precisaria esperar muito para que pipocassem as notícias de tragédias. Se antes a casa uivava através das fresta das janelas, agora parecia ter mergulhado num profundo silêncio. Logo o vento voltaria calmo, como sempre.

Resolveu sair de casa naquela tarde nebulosa. Aproveitar o pouco tempo antes da chuva. Sentir o cheiro da umidade.

Pôs o pé na areia. Estava gelada. Inflou o peito. Sentia-se só. A solidão se agravava por pensar que estava estagnado. Sua vida parecia sempre a mesma. Foi se aproximando do mar e sentiu algo alcançar seus pés. O vento suave fez enrolar em seu tornozelo um tecido frio. Olhou-o.

Ficou maravilhado quando abriu o tecido. Tão fino e tão leve, misturava cores muito vivas de rosa e azul. Notou fios dourados trançados na trama. Em uma das franjas, uma corrente amarrada. Carregava um pingente de lua e estrela. Parecia ouro.

Sentou-se na areia. Ainda podia sentir um levíssimo perfume no tecido. Deixou sua imaginação divagar.

De repente, levantou-se. Enrolou a canga sobre os ombros, deixando-a bem à mostra. Segurou a corrente entre os dedos e caminhou na direção contrária ao vento.

Caminhos misteriosos, pensou.