setembro 15, 2005

olheiro

Não estava num dia bom. A insônia a acompanhou até o fim da madrugada, tinha acordado atrasada, havia perdido o ônibus, teve de beber um café frio e aguado. Quando chegou, disseram-lhe que muitos documentos a esperavam. Arquivou muitos, reclassificou outros tantos. O pó e o cheiro de mofo agravados pelos intermináveis dias de chuva na cidade entraram-lhe nas narinas. Espirrou. Espirrou. Espirrou. Já era a terceira vez naquela manhã que visitava o banheiro para se lavar.

Terminando a tarefa desprezível no arquivo, direcionou-se ao balcão. Até havia se acostumado com o barulho irritante das senhas, mas, especificamente naquele dia, as campainhas pareciam soar muito mais do que o normal. E..., para piorar seu ânimo com o mundo, um homem, desde que retirou sua senha e pôs-se a esperar em pé dentro da repartição, não tirava os olhos dela.

O incômodo era tamanho - com a alergia, o trabalho, o clima, os colegas, o café, o sono e, agora, o homem - que os espirros se tornaram ainda mais violentos. Quase escandalosos. O homem não olhava exatamente pros seus olhos e isso a intrigava ainda mais. Sentia-se analisada no pior sentido da palavra. Queria, pelo menos, que seu rosto estivesse lembrando menos Rudolph, mas não conseguia parar de esfregar a mão no nariz.

Depois de uma eterna meia hora, a vez do homem coube exatamente a ela. Não poderia ser diferente naquele dia.

- Sim...
- Um certidão negativa de ICMS, por favor.
- O Sr. precisa de...
- Está tudo aqui.

Começou a verificar os documentos. Folheava os papéis, mas só conseguia pensar naquele olhar insistente que não parava de mirar seu rosto.

- Uhum... é... percebi que o senhor me acha diferente.
- ... O quê?
- Percebi que não pára de olhar pra mim. Tem alguma coisa errada?
- Ah... não, não... desculpe-me. É... que... na verdade... bom, o fato é que minha empresa é bem perto daqui, sabe..., então, vim a pé. Quando passei naquela floricultura, ali da esquina, vi umas flores - rosas - com uma cor linda. Algo que eu nunca tinha visto igual. Fiquei impressionado, sabe?! Então... quando cheguei aqui... desculpe-me... não pude deixar de notar você... está espirrando bastante. Mas... o que me chamou a atenção mesmo foi que... não me leve a mal, não... mas é impressionante como a cor dos seus lábios se parece com a cor das rosas que me chamaram a atenção lá fora. Foi só isso... nem percebi que estava incomodada... na verdade... nem pensei que pudesse estar incomodando... desculpe-me mais uma vez.

Com a respiração um pouco presa, os olhos um tanto incrédulos e secos, a boca entreaberta, ela só lhe disse pra que esperasse um minuto. Fez o caminho como quem desliga o despertador de olhos fechados ao lado da cama, sonâmbula.

- Ah... tudo bem... aqui está. O Sr. pode voltar na terça-feira que vem para pegar a certidão.
- Ok... obrigado.

Miraculoso remédio para os espirros.

3 comentários:

Anônimo disse...

Se não fosse as rotinas encardidas talvez não notasse com tanta ênfase o que ocorreu. Os sapatos lhe apertavam os dedos e os calcanhares. As tarefas diárias no trabalho não lhe davam trégua. A temperatura do ambiente era infernal. Os dedos doíam. Os olhos trabalhavam arduamente com o objetivo de localizar entremeados na tela do computador aqueles malditos erros, os quais seu superior imediato lhe chamara a atenção. As pessoas falavam sem limites. Havia uma mistura de caos e caos, o que agravava a sensação de...caos. A caneta, no papel, anotava os descuidos que o digitador tivera. Uma gota lhe corria na face, umedecendo sua barba. O relógio talvez, parado.
E...
- Quer um café?
- Oi? Café? Não...obrigado.
- O que está fazendo? Você está muito sério hoje.
- Hmmmm... eu?
- Nem me diga.
- É.
- Ontem eu fui a minha primeira aula de Tai-Chi. O Professor é um chinês baixinho. - Sorrindo
- Ahn.
- Ele disse que as pessoas são responsáveis por suas tristezas. Achei essa idéia diferente.
- ...
- O que pensa a respeito?
- Como?
- Sobre as desgraças. Nós mesmos causamos nossas desgraças?
- Não creio.

Sentiu as mãos dela nos seus ombros. Ondas de sensações percorriam seu corpo .Muito bom.
- Ele ensinou essa massagem. Esse ponto que estou apertando, ele disse que tem ligação com os pés. Engraçado isso não é?

Anônimo disse...

Um novo começo, ou um fim perfeito. De qualquer modo, gostei.

Mythus disse...

Eu não posso fazer nada... são olhos de curiosidade, quando se prendem algo e difícil largá-los. :^/