dezembro 19, 2005

desligamento

Rasgava cada foto com uma calma assustadora. Era uma caixa cheia de momentos felizes transformados em lixo. Fez questão de arrancar a imagem dela de cada retrato, rasgando-a em vários pedaços até que ficasse irreconhecível. Se houvesse lágrimas em seu rosto, poderia pensar que se acometera de uma tristeza infinita, mas seu olhar era frio. Denso. Opaco.

Alguém diria que estava buscando apagar de sua memória aquela parte de sua vida, totalmente dedicada a ela. Quem sabe, ele realmente estivesse pensando nisso quando estilhaçou a primeira fotografia. No entanto, sua lembranças se tornavam cada vez mais vivas enquanto ouvia a laceração daqueles papéis. De todos os músculos de seu corpo, o que se encontrava mais rijo estava no meio do peito. Juntou os montes. Jogou-os pela janela e assistiu a queda de cada um deles, demoradamente, acompanhando o trajeto vertical de vinte andares até o asfalto movimentado em plena Av. Paulista. Por algum tempo, os pedaços ainda voavam, carregados pelo movimento dos carros, das pessoas. Poucas chegaram a olhar pra cima, tentando entender de onde vinham aquelas minúsculas imagens incompreensíveis.

Encheu os pulmões com o ar cinza e pesado e sentiu-se mais forte. Sentou, pôs os cotovelos nos braços da cadeira, acomodou suas costas no encosto estofado, juntou as pontas dos dedos das duas mãos e, com eles, apoiou a boca e parte do queixo. Esperava, olhando fixamente para a porta. Pouco tempo depois, duas batidas. Imóvel. Duas mais. Seus olhos nem piscaram. Já acostumado com a escuridão da sala, viu o trinco se mover lentamente. Sentiu-se pronto.

Enfim, era mesmo seu melhor amigo. Uma mão abria a porta, agora bruscamente, a outra envolvia a cintura de sua mulher. Beijava-a. Levantou-a em seus braços e fechou novamente a sala chutando a porta.

Ele, por um momento, fechou e apertou as pálpebras, mas abriu-as novamente, sem lágrimas, sem amor.

Quando chegaram à mesa, baixou o braço até o interruptor.

novembro 27, 2005

breathing

Outono chegara. Naquele país que lhe era tão sonhado, as folhas amareladas e avermelhadas cobriam as ruas que lhe pareciam tão antigas. Caminhava e, no olhar, trazia um misto de curiosidade e familiaridade. O canto esquerdo da boca levemente curvado para cima. O instrumento pendurado no ombro direito e as mãos nos bolsos daquele casaco que deixava ser corpo esguio. Gostava de sentir os cabelos voando suavemente com cada passo largo seu. Olhava as folhas se espalharem e as pessoas que passavam sem a notar. Ela as notava, todas. O sol do amanhecer era seu amante. Sentia-o entrar em seu corpo como alguém que a conhecia há muito, muito, muito.

Começava a ouvir o som de um violão e uma voz. Aproximavam-se. Apaixonou-se pela melodia. Ao chegar à esquina, viu-o sentado num café, completamente absorto nos acordes. Parou. Pôs-se a ouvi-lo e só a ouvi-lo. Em poucos segundos não prestava atenção a mais nada. Só a ele. Sua cintura acompanhava discretamente o ritmo. A cidade era dela. E os olhares da cidade também passaram a ser. O dele continuava fechado. Quando ele levantou as pálpebras, não existiu possiblidade de não a ver. Cumprimentaram-se sem gestos ou palavras. Ela se lembrou de qual era o final de seu caminho naquele dia. O sol lhe chamava de volta. Então, ela foi até o músico, deu-lhe um beijo no rosto e voltou a pisar nas folhas secas.

Yes, sir. I love this. Wish you were here.

novembro 12, 2005

identidade (5) - fim

- Por que tenho a impressão de que você não me é tão desconhecido assim?

- Me conheceste poucos minutos antes do acidente.

Franzi a testa. De repente, aquela imagem de alguém me apertando bruscamente os ombros...

- Você é aquele pai...

- Isso mesmo. O que procurava pela mulher dos cabelos cacheados.

- Nossa...

Por algum tempo ficamos nos olhando. Quando eu vi aquele tapa, pensei que era só uma voyer de uma história que nunca seria minha. Mas aquela mão pesou em mim, de alguma forma, e em poucos segundos eu deixei de ser uma simples observadora. Estava completamente envolvida naquele estranho contexto.

Felipe me contou sobre um caso tórrido de amor. Pura imaturidade e inconseqüência. A falta de dinheiro os separou. Alguém mais rico e mais ingênuo entrou na jogada. Ele ficou sem amor, sem filho. Ela conseguiu se esconder por um tempo. À primeira vista, Felipe achou que seria melhor assim. Mas, como acontece com algumas coisas que a gente deixa pra trás na vida, o tempo passou e a vontade de remexer no passado apareceu como unha encravada. Incomodava. Doía. Aos poucos, o que parecia morto pra sempre começava a recobrar os sentidos. Cada passo à frente que dava lhe soava como uma imensa vitória. Dezesseis anos se passaram até que tudo estivesse pronto.

Mas a multidão, as pistas, eu, ele, a mãe. Felipe não tinha dado conta de todas as variáveis. Reconstituía-me as cenas do "quase-encontro" com os olhos completamente marejados. Acabei me perdendo no azul intenso daquelas janelas abertas de sua alma.

- Eu cheguei a vê-lo de relance! Seus olhos... lembraram-me tanto de meu...

Sentado na beirada de minha cama, não terminou a frase. Ao fechar os olhos, duas lágrimas espessas escorreram. Respirou fundo e enxugou-as com a mão direita.

- Desculpe-me. Sei que não tens nada a...

Não me contive. Beijei sua boca. Lembrando-me disso, nem sei exatamente o quê jogou meus lábios contra os dele, mas o fato é que nossos dois corações inquietos, naquele momento, acalmaram-se. Não era só o peito dele que se encontrava tão vazio. Enlacei seu corpo no meu suavemente e inspiramos juntos. Tudo parecia mais leve. Quando lentamente afastei meu corpo, toquei em sua nuca e acariciei seu cabelo. Ele sorriu.

- Não se preocupe. Eu estou contigo agora.

* Não sei exatamente se essa história termina por aqui. O fato é que não tenho mais nenhuma informação a respeito do caso. Se alguém souber de alguma coisa, por favor, continue o relato.

novembro 03, 2005

identidade (4) - penúltimo capítulo

Quando consegui finalmente abrir os olhos, senti-me emergindo de uma situação de quase afogamento. Puxei todo o ar que podia. Minha boca demorou a fechar. Meus olhos abertos queriam ver mais do que podiam. Tudo doía. Era uma sensação de ressaca multiplicada inúmeras vezes. Minha cabeça pesava como nunca. Senti-me invadida por agulhas.

É difícil dizer ao certo quanto tempo fiquei a olhar tudo em minha volta. Creio que minha forma de perceber os minutos passarem estava completamente alterada naquele momento. Enquanto os poucos movimentos físicos que podia realizar pareciam acontecer lentamente, meus pensamentos corriam num ritmo frenético. Tentei recompor algumas cenas na cabeça. Um passado que eu não sabia quão recente era.

Uma enfermeira abriu a porta e, quando percebeu meus olhos arregalados, pareceu se surpreender. Sorriu serenamente.

- Que bom lhe ver acordada. Como você se sente?

Não demorou muito para receber mais uma visita. O médico chegou e pegou minha mão.

- Liguei para seu marido. Ele disse que, o quanto antes, vem vê-la.

Dessa vez fui eu que sorri. Não conseguí passar daquele sorriso tímido, quando os dentes continuam ocultos.

- Que bom. ... Mas... há quanto tempo estou aqui?

- Você chegou há três dias. Perdeu muito sangue. Mas tenho certeza de que seu marido vai lhe responder todas as perguntas. Tenho que continuar minha ronda.

Devo ter acordado no meio da tarde, porque não demorou muito a escurecer e, logo que o sol se escondeu, um homem entrou.

- Olá. Fico feliz em vê-la melhor. Estava preocupado.

- Bom... você deve ser meu marido, acertei?!

- Isso mesmo. Prazer, eu sou Felipe.

outubro 26, 2005

identidade (3)

- Sai! Sai! Pedro, tira essa gente daqui.

- Mas... peraí. O que você vai fazer?

- Tô levando a garota. Eu a conheço.

- Mas... cara...

- A gente vai levá ela pro hospital, não se preocupe.

- E esse sangue todo...

- Tá. Toma a minha camisa. Entra aí e tenta estancar.

outubro 21, 2005

identidade (2)

De repente, senti-me como um floco de neve numa encosta íngreme abalada pelo vento. Esforcei-me para que meus pés acompanhassem o ritmo forte da multidão. Apavorante era a sensação de um iminente atropelamento. Rumo à escadaria da igreja, meu corpo ia sendo levado pelos movimentos dos outros. Indescritível desespero. Meu coração na boca. Meus olhos embriagados viam meu corpo no chão.

Ouvi os porretes baterem em escudos de plástico. Os gritos já eram outros.

Chegando ao primeiro degrau, senti-me mais livre e resolvi mudar de direção. Não era fácil remar contra a corrente. Mas tinha que deixar a fumaça pra trás. Finalmente conseguia correr. Não sabia pra onde estava indo. Não me vi chegar à avenida.

O freio berrou junto com a buzina. Por último, ouvi o impacto da cabeça no pára-brisa.

outubro 10, 2005

identidade

PÁ!!!

Sonoro e inesquecível. Dava pra imaginar a dor que sentiu pela marca vermelha que ficou no lado esquerdo de seu rosto. Não derramou uma só lágrima. Nem levou a mão ao lugar do tapa. Ao abrir os olhos, não hesitou em encará-la. Não revidou. Não reclamou. A mãe o agarrou pelo braço e foi levando-o para longe.

Fiquei imaginando quem seriam eles. O que estaria na cabeça daquele rapaz, tão jovem e tão adulto. Desliguei-me um pouco da multidão, que gritava. Deixei cair a bandeira e tentei seguí-los. Ainda vi os cabelos encaracolados da mãe entre aquela imensidão de cabeças por alguns segundos. Depois sumiram feito fumaça.

Fui puxada com força por alguém. Virou-me. Apertou meus ombros e arregalou seus olhos me perguntando se eu tinha visto seu filho. Perguntei-lhe sobre idade, feições. Eu sabia quem ele procurava. Contei sobre a mulher dos cachos e, imediatamente, o homem largou meus ombros e beijou minha mão. Outro desaparecimento.

Senti-me atropelada por uma história, cujo começo e fim me eram desconhecidos. Mas tenho uma estranha desconfiança de que haverá um reencontro.

setembro 29, 2005

água na boca

Ela os recebeu com os olhos um pouco arregalados. O barquinho era uma obra de arte. Pequenos rolinhos de arroz, envoltos por finos pedaços de algas, coisas coloridas do interior. Cores intensas. Pegou os dois palitinhos. Lambeu os lábios sutilmente.

Eu a observava. Parecia que ela se esquecia do mundo naquele momento. Coloquei um pouco de shoyo no pratinho. Passei um pouco da raiz no sushi de pepino. Pedi-lhe que comesse um gengibre antes. Ela apertou com força os olhos. Não pude conter o sorriso.

- Ei... péra. Esse suco não combina.

Esperamos um instante. O saquê quente não demorou muito.

Bebi com ela. Mas suas pálpebras insistiam em manter seu olhar concentrado no que lhe acontecia por dentro, enquanto meus olhos só sabiam fitar o rosto dela.

Eu catei um e fiz sinal para que me acompanhasse. Abriu com vontade a boca e assim que colocou pra dentro, fechou os olhos. Não precisava imaginar o que ela sentia. Ainda lembrava da minha primeira vez. Seu jeito calmo de mastigar me dava água na boca. Sentiu o arroz primeiro. O pepino depois. Mas, de repente, a raiz forte se espalhou por toda a língua e mucosas. No mesmo instante ela abriu os olhos arregalados e subiu as sobrancelhas.

- Hum!!!!
- Hahahahaha!

Ela abriu o maior sorriso que podia com os lábios fechados. Depois virou os olhos. Eu sentia tudo novamente ao olhar suas expressões.

Fomos repetindo tudo. Um gosto de cada vez. Chegamos no sashimi. Salmão. Raiz. Shoyo. Boca. Não mordíamos o peixe. Apertá-lo com a língua contra o céu da boca era muito mais interessante. Era como se ele derretesse em meio à saliva enquanto a raiz anestesiava tudo. Eternos segundos. Os lábios recorriam novamente ao copo quadrado da bebida quente. O gosto alcoólico do arroz parecia mais intenso agora. Ela começava a sentir o lábio inferior entorpecer.

Seus pés procuraram os meus debaixo da mesa. Meu corpo se aqueceu imediatamente. Olhou-me como nunca antes. Seus olhos entraram nos meus e viam minha alma. Naquele momento, conhecíamos-nos profundamente. Vontade louca de estar e não estar ali ao mesmo tempo. Loucos olhinhos puxados. Louca raiz. Loucos palitinhos que traziam pela mão dela um novo pedaço de céu e inferno à minha boca.

setembro 22, 2005

agonia

Sabe aquela hora em que você não entende mais nada, em que não quer saber mais nada, quando tudo lhe parece incompreensível?
Aquele momento em que você parece estar no meio de um caminho que não leva a lugar nenhum e as marcas que você deixou na chegada parecem ter sumido?
Até dá pra desvendar o porquê da sua presença ali, mas seria bastante complicado dizer qual seria o próximo passo.
Há uma infinidade de correntes de ar. Todas o querendo levar pra um lugar diferente.
Cheio de possiblidades, você parece não poder ou não querer nenhuma delas. É uma peça com encaixe elíptico num quebra-cabeças de cortes retos.
Empacado ou planando? Nem mesmo você saber dizer.
Será que está com as rédeas na mão? Será que os cavalos estão encilhados? Será que eles são seus?
E os seus desejos? De quem são?
O duro é esperar para atravessar a rua. É vagar sem direção onde as ruas já estão definidas. É trilhar o seu próprio caminho no meio da multidão inquieta.
Queria viver de vento. Mas o vento é só meu amigo, nada mais.

setembro 19, 2005

sem chave

Uma lágrima desceu em seu rosto. Era mais salgada do que o normal. Do outro lado, o sal também escorreu. Parecia vir intenso direto do coração. A boca contraiu levemente antes da mão chegar tentando escondê-la. Foram só três, mas as gotas marcaram seu rosto. Quando as sobrancelhas ficaram muito próximas uma da outra, os olhos se fecharam fortemente.

Não. Tinha muito mais ali dentro. Mas o costume trancafiava todo o rio. O gosto diferente na língua. O nó esquisito no peito. A impressão de tudo ser tão pequeno e tão grande. A certeza de que ninguém entenderia.

Em poucos segundos as marcas só seriam vistas pelo espelho. Ainda não era o momento de cair, pensou.

setembro 15, 2005

olheiro

Não estava num dia bom. A insônia a acompanhou até o fim da madrugada, tinha acordado atrasada, havia perdido o ônibus, teve de beber um café frio e aguado. Quando chegou, disseram-lhe que muitos documentos a esperavam. Arquivou muitos, reclassificou outros tantos. O pó e o cheiro de mofo agravados pelos intermináveis dias de chuva na cidade entraram-lhe nas narinas. Espirrou. Espirrou. Espirrou. Já era a terceira vez naquela manhã que visitava o banheiro para se lavar.

Terminando a tarefa desprezível no arquivo, direcionou-se ao balcão. Até havia se acostumado com o barulho irritante das senhas, mas, especificamente naquele dia, as campainhas pareciam soar muito mais do que o normal. E..., para piorar seu ânimo com o mundo, um homem, desde que retirou sua senha e pôs-se a esperar em pé dentro da repartição, não tirava os olhos dela.

O incômodo era tamanho - com a alergia, o trabalho, o clima, os colegas, o café, o sono e, agora, o homem - que os espirros se tornaram ainda mais violentos. Quase escandalosos. O homem não olhava exatamente pros seus olhos e isso a intrigava ainda mais. Sentia-se analisada no pior sentido da palavra. Queria, pelo menos, que seu rosto estivesse lembrando menos Rudolph, mas não conseguia parar de esfregar a mão no nariz.

Depois de uma eterna meia hora, a vez do homem coube exatamente a ela. Não poderia ser diferente naquele dia.

- Sim...
- Um certidão negativa de ICMS, por favor.
- O Sr. precisa de...
- Está tudo aqui.

Começou a verificar os documentos. Folheava os papéis, mas só conseguia pensar naquele olhar insistente que não parava de mirar seu rosto.

- Uhum... é... percebi que o senhor me acha diferente.
- ... O quê?
- Percebi que não pára de olhar pra mim. Tem alguma coisa errada?
- Ah... não, não... desculpe-me. É... que... na verdade... bom, o fato é que minha empresa é bem perto daqui, sabe..., então, vim a pé. Quando passei naquela floricultura, ali da esquina, vi umas flores - rosas - com uma cor linda. Algo que eu nunca tinha visto igual. Fiquei impressionado, sabe?! Então... quando cheguei aqui... desculpe-me... não pude deixar de notar você... está espirrando bastante. Mas... o que me chamou a atenção mesmo foi que... não me leve a mal, não... mas é impressionante como a cor dos seus lábios se parece com a cor das rosas que me chamaram a atenção lá fora. Foi só isso... nem percebi que estava incomodada... na verdade... nem pensei que pudesse estar incomodando... desculpe-me mais uma vez.

Com a respiração um pouco presa, os olhos um tanto incrédulos e secos, a boca entreaberta, ela só lhe disse pra que esperasse um minuto. Fez o caminho como quem desliga o despertador de olhos fechados ao lado da cama, sonâmbula.

- Ah... tudo bem... aqui está. O Sr. pode voltar na terça-feira que vem para pegar a certidão.
- Ok... obrigado.

Miraculoso remédio para os espirros.

setembro 11, 2005

caça... caçador...

Então... chega. Preciso sair. A noite não está linda, mas pode ficar.

Temperatura boa... vontade louca de ver gente... não quero endoidecer.

Vamos ver... deve ser uma roupa que não chame muito a atenção, mas que seja especial para um bom observador. Bom... acho que hoje vai ser difícil, porque esse espelho parece estar me olhando um pouco torto. Hum... esse não... isso não dá certo... hum... vamos ver se encontro algo melhor... esse é muito decotado... esse é meio transparente...
Gosto da calça branca, mas é melhor não. Muito evidente se algum imprevisto acontece.

Isso! O vestido preto é bom.

Tomar banho, secar o cabelo, escovar os dentes. Bem que eu poderia fazer uns rolinhos nesse cabelo sem graça. Mas... ix... dá muito trabalho. Não estou com saco pra isso.

Lápis, rimel, batom. Não adianta: nunca gosto do vermelho. A boca parece que vem dois quilômetros antes do corpo. Vai o de sempre mesmo.

Perfume... hum... nem muito doce nem muito cítrico.

Salto. Chaves. Bolsa?! Só atrapalha. A gente dá um jeito.

...

...

...

Freio de mão. Voltei cedo. Típico. Sempre chego com a mesma conclusão. Melhor seria se tivesse calçado um tênis. Pena que os homens de tênis parecem não sair à noite.

setembro 02, 2005

medo do branco

Quantas informações ele pode guardar?
Quantos atalhos ele pode construir?
Será que existem gavetinhas suficientes?
E se, na hora "h", ele não conseguir me mostrar qual delas abrir?
E... se ele me mostrar errado?
E as coisas que pertencem a duas memórias ao mesmo tempo? Onde ficam?
Como ele distingue o que deve gravar e o que não?
Ele sabe que confio nele... mas... sabe como é... nem sempre ele está de bom humor.

agosto 24, 2005

ciclo

Conheceu a vida.
Conheceu as pessoas.
As coisas.
O mundo.
O certo e o errado.
A tristeza e a alegria.
O carinho e a indiferença.
E... mais tarde... conheceu alguém.
Conheceu o amor.
E foi como se tudo tivesse retornado ao começo.
Reconheceu e conheceu tudo de novo.

agosto 21, 2005

labirinto

Nada de mais. Pele branca. Minúsculas manchas vermelhas nos antebraços. Cabelos na altura dos ombros. Nem lisos, nem rebeldes. Olhos amendoados. Duas pintas, no lado direito do umbigo, impossíveis de não notar quando se espreguiçava na cadeira. A boca.

A dez centímetros de distância de segunda a sexta. Mas continuava matutando como poderia chegar perto dela.

Ela sabia. Tinha vontade de perguntar a razão, mas não lhe dava a mínima importância. Só curtia provocar.

agosto 15, 2005

um tanto fora de época

- ... você tivesse visto. Está enorme. Eu acho que o problema é que ela casou muito cedo. Também...

Desligou-se por um instante. Seus olhos desviaram do olhar dela. Nada perceptível para alguém que tinha a concentração em outras coisas.
Shoppings eram sempre assim. Ainda mais naquele horário. Adolescentes por todo lado. Viu-se em alguns deles. Mochilas largas que batiam na bunda das jovens criaturas a cada passo. Nas meninas, aquelas bolsas compridas que quase as impediam de andar. Ele não tinha conhecido os pinduricalhos que estavam na moda hoje. Meninas de treze anos com saltos enormes e maquiagem diária. Ficou tentando recordar como esse desfile caricato lhe parecia quando tinha os seus 15.

- ... um prateado ma-ra-vi-lho-so. Fiquei pensando que também poderíamos comprar um. O que acha?
- Podemos ver.

Do outro lado um grupo de garotos secavam três meninas em uma mesa. Senhor do céu... não me lembro mais se eu era tão patético... Incomodou-se com a maneira com que uma das garotas mascava o chiclete. Franziu a testa. Um dos garotos se levantou com a bermuda mais baixa que a cueca. Conversas e risos fúteis. Não... fúteis não... imaturos, provavelmente.
Seu olhar voltou para ela. Enquanto falava, olhava incessantemente para as unhas que havia acabado de fazer. Reparou no jeito esquisito com que pegava as batatas fritas. Unhas grandes... deve ser difícil mesmo... Bocejou. Esfregou os olhos. Cruzou os braços. Já era a terceira vez que sentava na mesma cadeira naquela semana.

- ... convidou a gente pra ir também. Adorei. Mas não tenho roupa e não posso ir de qualquer jeito. Acho que...

Difícil vai ser ela achar algo que combine com aquele sapato que comprou no outro dia. Tinha que dar uma segurada. Estava começando a ficar preocupado com a prestação do cartão. Lembrou-se de que precisava passar na farmácia. Ela havia lhe pedido pra comprar band-aids quadrados para evitar os calos, companheiros dos couros duros e dos saltos altos.
Achava horríveis aquelas sapatilhas de plástico com o bico fino que vendiam po aí. Umas rosas, outras azuis, brancas. Mas ela tinha uma também. O comentário era proibido.
Viu um menino com o braço por cima dos ombros da namorada. Parecia que tinha o rei na barriga. Também sentia que, naquela época, ter uma garota bonita e bem arrumada era troféu.

- ... mesmo o cinema?
- Hum?!
- O filme. Que horas começa mesmo?
- Ah... é... daqui a quinze minutos.
- Meu bem... você não quer ir entrando? Acho que vou dar uma olhadinha naquela saia ali.
- Vai. Eu te espero.
- Lindo. Te adoro, viu?!

Deu-lhe um beijo estalado no rosto.
Ela era tudo o que ele queria. Quando era adolescente.

agosto 08, 2005

adversativo

Meu amor é pleno, mas dividido.
É intensamente presente, mesmo que ausente.
Fisgou-me pela palavra, que, desde sempre,
é quase tudo o que me fascina.
Sinto minha pele urgir pelo seu cheiro.
Meu peito tremer num ritmo diferente
sem nunca ter encontrado o dele.
Hoje, não sou eu que lhe noto a nova cã.
Inefável vazio agravado pelo passar dos meses.
Pobre condição esta de estranhos amantes.
Amam platonicamente um ao outro
na esperança do Vento soprar do norte e do sul ao mesmo tempo.
Maldito pombo-correio,
que, de mim, pode levar o cílio,
mas não o corpo inteiro.

agosto 06, 2005

encontro


E o fim de noite agradável se tornou misteriosamente divino. Uma prece inusitada e charmosa.

agosto 03, 2005

um dia

Acorda,
veste,
arruma,
come,
guarda,
papeia,
desce,
liga,
escreve,
reescreve,
estuda,
pesquisa,
configura,
consegue,
alegra,
estuda,
escuta,
come,
fala,
volta,
senta,
lê,
descobre,
reforça,
confere,
escreve,
completa,
resolve,
descança,
assiste,
conversa,
põe,
ajeita,
prepara,
come,
pede,
vai,
escuta,
atenta,
compreende,
redescobre,
lê,
anota,
ri,
sai,
anda,
anda,
anda,
chega,
limpa,
acarinha,
brinca,
trata,
come,
lava,
suspira,
telefona:
"olha... ele não tá em casa...".

Que desgraça.

julho 31, 2005

saudades de...

... um tempo em que nunca vivi...
... uma história que desconheço...
... um gosto que ainda não experimentei...
... uma boca que nunca beijei...
... uma vida que nunca foi minha...

... pode ser que nosso coração seja como a gota de orvalho que Tom observava naquela singela pétala de flor.

julho 27, 2005

segundos de lucidez

- Ei! Vem cá.
- O que é?
- Olha.
- Hum...
- Viu?
- Vi.
- Olha bem!
- Tô vendo. O que tem?
- Cega. Bem aqui, ó!!!
- Ah...
- Olha que horror!
- Pois é...
- Então?!
- Então... o quê?
- O que tem a me dizer?
- Meus pêsames.
- Como??
- Hã... é... é uma pena... mas não parece ter sido muito grave...
- Arrgh! Eu quero um pedido de desculpas!
- Mas não fui eu!
- Uhum... claro que não foi você. Vai ver fui eu mesmo. Devo estar senil pra não ter percebido ou ouvido nada quando aconteceu. Devo ter perdido a mão. Ora... você é tão cínica...
- Caramba. Nem sei o que dizer. Eu nem saí de casa hoje!
- Vai ver foi por isso. Veio limpar e arrastou algum anel, vassoura ou algum pinduricalho ridículo... esse seu figurino é de matar qualquer um...
- Escuta. Não vou mais discutir com você. Já basta. Não fui eu.
- Claro... vai ver foi o cachorro.
- Deve ter sido ele mesmo. Você o deixa solto por aqui e vive ensinando o coitado a entrar sozinho no seu “bebê”.
- Se enxerga! Ele é muito mais inteligente que você.
Ele se abaixou, lambeu o polegar direito e acariciou o carro.
Ela o olhou por 5 segundos exatos.
- Sei... mas olha... não se preocupe. Acho que o arranhão vai sair bem mais barato que a separação. Vou arrumar minhas malas. Estúpido.

julho 25, 2005

sugestivo

Tempo de reformas em casa. Móveis desmontados esperando carona.

Tinham comprado um rolo de dez metros de plástico bolha. Aqueles que a gente encontra em embalagens de coisas novas e não resiste à tentação de ficar estourando, bolhinha por bolhinha, até alguém irritado gritar.

- Pelamordedeus, pára com isso, criatura!

Forraram o chão de um dos cômodos. Sujeira de reforma, dentro de casa, é praga. Entra em cantos inimagináveis. O plástico era só uma tentativa de minimizar os danos.

Esperou um momento sozinha. Andou de lá pra cá. Sorriso no rosto. Ploc. Plocploc. Plo-ploc-plo-p-prrrrloc. Deitou-se. Rolou de lá pra cá. Ria. Os cotovelos passando pelo chão faziam estourar muitas. De bruços, os ossinhos salientes da bacia tinham um efeito parecido. Os joelhos. Os calcanhares. Até com o queixo era engraçado. Não era só o ouvido que se divertia, a pele também. Os indicadores iam andando em filas paralelas estourando uma por uma. Soava até ritmado. Deixou o corpo largado olhando pro teto por um momento. Sonhou. Uma companhia cairia muito bem por ali.

julho 23, 2005

transição

De repente viu se abrir. Vuuussssshhhhhh. Não tinha mais chão e começou a cair.

Caía... caía... gritava... chorava... caía... debatia... desesperava-se.

Estava perdido. Não sabia viver assim. Via as informações passarem ao seu redor numa velocidade incrível e não conseguia assimilar todas elas. Ouvia as pessoas discutirem intensamente sobre o buraco negro e tudo começou a soar tão irritante, tão doído, que, muitas vezes, fechava os olhos tentando fechar os ouvidos. Não conseguia, evidentemente. Mas sobreviveu.

Será que aprendeu a voar? Ninguém sabe. Ninguém obteve mais notícia. Deve ter sido sugado pelo escuro. Ou deve ter encontrado outro tipo de chão.

julho 19, 2005

aprisionado

Completamente encurralado. Entre uma parede e outra não via por onde poderia sair. Nem lembrava como tinha chegado àquela situação. Estava confortável, sim, mas ficou preocupado. Sentia-se bem. Na verdade, sentia-se ótimo. Na sua cara dava pra ver o sangue novo e vermelho escarlate.

Deu-se conta de que sua preocupação não era com o como conseguiria sair dali, mas com o dia em que escancarassem uma porta ou uma janela, quando ele saberia que não mais bateria descompassado. Quando teria certeza de que teria que voltar, livre, a soar o ritmado e sem-graça tum-tum cotidiano.

julho 16, 2005

nostálgico

Atravessou a porta do teatro.

! Parou um instante !! e sentiu o cheiro úmido da rua. ! Fechou os olhos !! e inflou o peito com calma. ! Expirou e curvou timidamente os lábios. ! ! Andaria até em casa. ! Não tinha pressa. !! Começou a reconstruir o concerto na cabeça, ! a relembrar as melodias ! principais. ! Sentia saudades. !! Não era incomum derramar !! algumas lágrimas ao ouvir ! os solos menores do spalla. ! Queria ! poder tocar daquele jeito!. Não para !! emocionar outros, ! mas para poder ! sentir seu coração ! ! e sua respiração !! confundidos com as vibrações ! e os silêncios das quatro cordas. !!! As curtas cinco quadras que separavam o teatro de seu apartamento ! se tornavam ainda mais ! bonitas no fim de tarde molhado. !! Sentia o momento de !! abandonar aquela cidade chegar muito rápido. ! Mas voltaria, !! certamente. ! Buscou a chave ! no bolso. !! Colheu mais uma gota ! e lambeu os lábios. !!!

Fechou a porta e tirou os sapatos. ___ Agradeceu ao vento por poder sentir o rosto gelado antes do banho quente.

julho 14, 2005

neblina [2]



Pena que nem sempre é tão bom ver as coisas de forma clara. A neblina pode ser mais cômoda que a luz aos olhos...

neblina



Tem momentos em que a gente não consegue enxergar um só palmo a frente do nariz.

julho 13, 2005

bem no meio do início do caminho...

... tinha uma pedra.

Obsessividade por organização, sabe?! Quando as meias estão jogadas num canto do quarto, no outro se vê embolada a roupa que se usou ontem, pilhas de papéis e jornais sem-teto, perfume fora do lugar, óculos perdidos embaixo de fotos.

Mesmo os vários livros abertos em cima de uma mesa precisam estar razoavelmente arrumados. Canetas, lápis, borracha. E o celular ao lado para não perder a hora e nenhuma mensagem ou ligação inesperada. Quando o ambiente externo parece minar o interno. Insanidades... que remédio?!

O jeito é aprender a arrumar a casa e escrever ao mesmo tempo. Até que não parece tão impossível...